quinta-feira

Capítulo 10 - B&B (Parte 3)

Abri a porta e entrei quando vi que ele vinha. Eu estava muito bem sentada, de pernas cruzadas no balcão da cozinha. Bruno abriu a porta e me procurou por alguns instantes.

- Posso saber o que você tá fazendo aí em cima? - Ele perguntou, quando deu por mim.

- Bom, você me perguntou se ainda faltava alguma coisa para uma noite perfeita, não foi?

Ele concordou, enquanto eu o puxava pela camisa mais pra perto de mim. Puxando até - nem tão por acaso assim - tirá-la.

- Eu só queria morder seu ombro. - Falei fazendo caminho com o nariz pelo desenho daquele horizonte que vinha do pescoço aos ombros dele. - Sentir esse cheiro bom no seu pescoço e, principalmente, o gosto, que tanto me assusta, da sua boca na minha... - Fui bem perto da orelha dele e perguntei: - Eu ainda preciso falar mais alguma coisa?

- Não, não... Não fala mais nada. - Ele disse antes de me segurar por alguns segundos fora do chão sem tirar minha boca da dele.

Minhas unhas vermelhas. A cidade sem luz. O sorriso torto e safado. Um apartamento vazio. Ombros à mostra. Meu juízo e a camisa dele jogados pelo chão de madeira.

Eu nunca havia visto um vestido ir embora tão rápido, eu nunca vi um sofá tão convidativo, eu nunca vi um escuro tão confortável como no calor daquele momento sem luz mas mesmo assim tão radiante. Eram dedos demais, línguas e cheiros demais, mãos demais, reboladas demais à medida que as roupas, o ar e a vergonha na cara iam ficando de menos.

Mas foi só quando ele resolveu parar e procurar a própria carteira nos jeans que estavam perdidos no escuro que eu resolvi notar onde diabo isso ia chegar. Foi aí que minhas mãos começaram a formigar assim como a ânsia de vomitar tudo o que eu não havia comido hoje. Eu - como a sempre bocó que sou - tinha de perguntar:

- P-posso sab-ber - pigarro nervoso - Posso saber o que é que você tá procurando? - É claro que eu sabia o que era que ele estava procurando na bendita carteira, só queria uma tentativa frustrada de acordar numa realidade aleatória onde eu deveria estar sonhando isso. Minhas mãos formigaram ainda mais quando ele respondeu:

- Eu achei melhor deixar por perto. Só isso. Não se preocupe. A gente não vai fazer nada que você não queira. - Era justamente o problema, eu não queira não-fazer nada. Só que pra não não-fazer nada, eu ia ter de fazer alguma coisa. Logo meus pés começaram a tremer loucamente.

Ele voltou pro sofá todo manso, deixou aquilo em cima da mesinha de centro, voltou pra perto de mim, deitou no meu colo e me abraçou.

- Você tá tremendo. - Bruno observou sorrindo. - Não precisa disso não, menina. Pode ficar calma.

- Eu estou calma. - Mentira. - Eu to super calma. - Mentira. - Eu estou calmíssima, Bruno.

- Você fica linda até mentindo. - Ele sorriu outra vez, me beijou e minhas mãos pararam de formigar à medida que eu senti vontade de ficar alí com ele e a cueca vermelha dele pelo resto da minha vida. Na verdade, eu imaginei que ficaria muito bem ali pelo resto da minha vida mesmo sem a cuequinha vermelha.

Então envolvida pelos beijos e braços, o enroscar de mãos, pernas, o cheiro quase macabro de tão bom que era o da nuca dele, aquela coisa seminua naquele recinto sem luz. Eu resolvi tentar. E depois de resolver dar um passo à frente, ficou tarde demais quando eu cogitei a possibilidade de voltar os dois pés pra trás.

Ele ficava sussurrando na minha orelha coisas carinhosas, doces e cuidadosas nas quais eu não prestava a menor atenção, posto que continuava muito bem concentrada em não ter a menor ideia do que eu estava fazendo. Era bom, estranhamente bom. Mas, puta que pariu, que dor. Até entrar numa certa dimensão onde você perde a noção do tempo, mas a de espaço continua intacta, principalmente a de que o seu espaço é realmente pequeno para tamanha equação. - Só eu mesma pra conseguir pensar em física uma hora dessas, aliás, pensar em um milhão de coisas ao mesmo tempo.

A única coisa mais rápida que meus pensamentos era meu coração desesperado querendo escalar minha garganta e sair goela afora enquanto eu ficava a observar a linha dos ombros e a cara engraçada - contudo, absurdamente mais linda que o normal, e cada músculo e arrepio, dele e nele, sorrindo torto pra mim no escuro. Eu não consegui deixar de sorrir de volta, nem de implorar mentalmente praquela dor desgraçada passar, pra ficar só a parte boa e pra que eu não estivesse fazendo (nem que saísse) nada de errado.


E por um instante, quando ele simplesmente me guardou num abraço e me beijou as mãos, eu pensei que pudesse amar Bruno enquanto eu pudesse estar viva, com direito a enviar convites com os nossos nomes impressos em tons de prata pra casar de branco e envelhecer juntinho, como naquele abraço desajeitado e fofo, pra nunca mais ter frio e saber como gastar o calor, pra nunca ser pra mais ninguém além dele, pra ele nunca ser de mais ninguém, só meu. Pras nossas linhas se cruzarem, nossos trapinhos se juntarem, e pra nós dois aguentarmos o que quer que fosse.

E até quando o instante passou, mesmo sendo um quase não, ainda era amor. Não era muito mais que um farrapo, uma fagulha de amor. Era só um pouquinho de quase nada, mas eu sei que era.

~

Foi quando ela adormeceu nos meus braços e eu fechei os olhos, querendo que ela não me fosse embora nunca mais. Enquanto eu estivesse vivo, com direito a me deixar esperando vinte minutos no altar pra botar o sobrenome do meu pai no fim do nome dela, pra gente ficar velhinho segurando a mão no escuro, pra tomar cuidado dela, pra viver com e pra ela, pra não ser de mais ninguém além dela, pra não deixar ela ser de mais ninguém além de mim. Pras nossas linhas se cruzarem, nossos destinos se juntarem, pra que eu conseguisse conquistá-la, enfrentando o que quer que fosse, e pra que eu pudesse escrever "B&B"*em cada muro que me visse passar pensando nela.

Eu não consegui dormir. Preferi ficar sonhando acordado, com a mulher dos meus sonhos dormindo no meu sofá, nos meus braços, até amanhecer.


*B&B = Bruno e Beca.

sexta-feira

Capítulo 10 - B&B (Parte 2)

- Espera um segundo, esqueci de uma coisinha. - Pedi, empurrando Bruno que caiu ao lado de Alice no sofá, voltei correndo no quarto, abri a terceira do meu criado-mudo, estava dentro da caixinha de música que muito me preocupei em afanar daquela casa medonha. Só peguei e botei dentro da bolsinha na minha mão e fechei tudo. A campainha tocou assim que eu pus o pé no corredor outra vez.

Alice andou até a porta, arrumou a franja pro lado, ensaiou um sorriso meigo e abriu a porta pra ele, cujo sorriso em resposta ao dela invadiu a sala, corroendo todo o ar que eu devia estar usando pra respirar. Bruno segurou minha mão. Daí as luzes se apagaram e eu segurei a mão dele de volta.

Faltou energia.

- Parece que foi no bairro todo. - Sal observou pela porta que ainda estava aberta em meio ao breu.

Meus olhos começavam a se ajustar pouco a pouco à falta de luz.

- Acho que as velas estão guardadas por aqui. - Alice disse tateando o caminho atrás do balcão da cozinha. - Merda. Emprestei minha lanterna pra Verônica levar na viagem.

- A minha eu escondi pro Breno não levar. Tá guardada, lá em casa. - Bruno levantou, soltando da minha mão. - Vou lá buscar.

- Ei, espera. - Ele virou pra mim. - A gente ainda vai sair? - Bruno deu de ombros num sorriso frustrado. - Então deixa eu ir com você. Acho que eu vou ficar sobrando aqui. - Alice acendeu a vela e veio trazendo ela pra mesinha de centro da sala, totalmente corada com a minha observação, Sal não prestou atenção, apenas sentou ao lado dela.

- Juízo, viu? - Nós duas dissemos ao mesmo tempo. Eu ri, Bruno puxou minha mão me beijando o rosto, dei tchauzinho pros dois e fechei a porta, jurando que a mão dele segurando a minha ia nos levar ao apartamento ao lado. Mas não.

Como se eu já estivesse vendo muita coisa, assim que eu botei o pé fora de casa, as duas mãos dele fecharam meus olhos e foram me guiando pro outro lado.

- Pra onde nós estamos indo? - Perguntei curiosa. Eu o ouvi rir, tirando as mãos dos meus olhos.

- Você lembra da última vez que viu as estrelas assim?

Eu não sei explicar. Havia milhões de pontinhos cintilantes por toda a extensão da noite, um espetáculo no escuro. Eu nunca as tinha visto alí, tão por perto, um mar de estrelas pedindo pra serem vistas. Quase uma hora foi embora até eu conseguir falar alguma coisa.

- Parece até que elas estavam adivinhando que ia faltar luz, e se arrumaram só pra gente se perder olhando. - Eu disse, sentada na escadaria. Bruno tinha sentado do meu lado, encostando a cabeça no meu ombro.

- Queria ter adivinhado também. Só que como meus planos estão eternamente fadados a não darem certo... - Ele falou, com os olhos saindo do céu e indo pro chão. - Eu só queria uma noite perfeita... Consegui uma vaga pra nós dois jantarmos no restaurante mais caro da cidade, eu até peguei o outro carro do meu , o mais bonito, depois a gente ia... Deixa pra lá. Pelo visto a luz não vai voltar tão cedo... Eu só queria que fosse uma noite importante...

- Ei. - Eu disse sorrindo, levantando o queixo dele para que ele olhasse nos meus olhos. - Você sabe que eu nunca liguei pra essas coisas caras e granfinas. Eu ligo pra gente, nós dois. Eu aqui, você tá aqui e, ... Olha só esse céu! Tem certeza que precisa de mais alguma coisa ainda pra deixar essa noite maravilhosa? Só porque não tem luz não quer dizer que a noite não possa ser perfeita.

Ele continuou me olhando, como se tivessem maquininhas trabalhando na cabeça dele.

- Que foi? Eu falei alguma coisa errada? - Perguntei.

- Sim. Ainda acho que ainda falta alguma coisa.

- Eu posso pelo menos saber o que é?

Bruno sorriu e tateou a própria calça, procurando sabe lá Deus o quê. Tirou de dentro do bolso o celular, apertou algumas teclas aleatórias e aumentou o volume. Então ele disse, pondo o celular no vão da primeira janela fechada alí perto e me levantou:

- Só um bolero meio R&B pra gente dançar juntinho... De rosto colado, pra sentir seu coração bater assim, no ritmo do meu - Ele me levou mais pra perto, me ganhando na dança dele - e os dois no ritmo da música, pra gente rir das bobagens que você diz achando que fez alguma coisa errada e das vezes que você for pisando no meu pé.

Eu sorri toda boba com o jeito dele falando. Nós dançamos no escuro por mais um tempo até mesmo depois que a música acabou. Foi quando ele sussurrou na minha orelha, perguntando:

- Acha que ainda tá faltando alguma coisa? - Eu ri, mordi o canto da boca e sorri levantando a sobrancelha. Sem falar nada, parei de dançar, peguei o celular no vão da janela fechada e saí andando pro apartamento ao lado.

- Você vai vir? - Perguntei quando percebi que ele ainda estava lá parado de pé na escadaria, bobo e lindo com o jeito da minha resposta quieta.