sábado

Capítulo 9 - Escadas (Parte 4)

Não tinha a menor idéia de que horas eram, mas estava amanhecendo por trás dos prédios no horizonte. O "esconderijo secreto" continuava o mesmo, seguro e parado no tempo a ponto de fazer eu me sentir com uns nove anos outra vez, principalmente depois de vê-la deitada alí. Eu ri sozinho, e me aproximei tentando não fazer barulho com medo de acordá-la.

- Alice, como você me ach..? - Beca disse, sem tirar os olhos daquela vista perfeita, e eu sem conseguir tirar os olhos dela.

- Não é a Alice. - Ela levantou rápida, assustada e tensa, eu ri. - Calma, sou só eu.

- Bruno?! O que você tá fazendo aqui? Como adivinhou..?

- Alice me ligou preocupada quando você saiu correndo e não te achava em lugar nenhum, nem ninguem na rodoviaria havia te visto pegar um ônibus. Então eu peguei o carro e vim direto pra cá... Ou você acha que eu esqueceria a nossa casinha avulsa, abandonada na melhor vista dessa cidade que você apelidou de "esconderijo secreto" quando a gente tinha, sei lá, nove anos? - Ela sorriu, voltando a olhar para o nada. Sem maquiagem alguma, com os olhos inchados, devia ter passado a noite inteira chorando.

- Por que você não senta aqui? - Não precisei que ela pedisse duas vezes. - Eu senti tanta falta desse lugar...

Os olhos dela, negros e indecifráveis, continuavam cheios d'água, sempre olhando para o nada, e eu morrendo por dentro sem saber o que se passava naquele mundo obscuro pro resto do universo. Sentei ao lado dela, deixei que ela segurasse minha mão e deitasse a cabeça no meu ombro.

- Senti falta de você, sabe. - Ela continuou a falar. - Eu quis arrancar sua mão da dela, porque por alguma razão insana na minha cabeça, era a minha mão que deveria segurar a sua, e mesmo a gente não sendo nada um do outro, era uma tortura mental imaginar você beijando ela pelo mesmo motivo, porque era a minha boca que devia estar na sua. Isso me assusta. - Ela me deu um sorriso e mexeu no cabelo. - Me proteger sempre foi uma opção mais fácil do que me deixar sentir qualquer coisa. Porque eu cresci com a indiferença e me acostumei com ela. Tipo aquilo de usar um sapato que machuca, só que usando o tempo suficiente, uma hora ele acaba parando de incomodar. Até chega você e me aperta o sapato num lugar que nunca tinha doído antes, fazendo com que eu me perguntasse se eu nunca sentia nada porque não queria, por não ser capaz ou só porque não era você.

Ela continuava sem olhar pra mim, deixando as lágrimas riscarem o desenho do rosto dela, uma a uma, contornando a covinha do lado direito quando ela sorriu sem humor outra vez.

- Se eu disser que tenho uma vaga ideia disso tudo acontecendo aqui, é mentira... - Ela disse, apontando para a própria cabeça em desânimo - Eu estou uma bagunça, eu sou um desastre, Bruno.

- Você é linda, mas é mais que isso. Você sorri suas tristezas com um ar de quem mente pra si mesma, fingindo pro mundo que tá bem. Uma carência sem tamanho escondida em toda essa força que você carrega como uma armadura. Vendo você querer tanto bem à Alice, se privando do que poderia finalmente te fazer feliz. - Ela me olhou, então fechou os olhos e apertou o rosto no meu ombro. - Não é muito comum achar alguem com a sua sinceridade mentirosa, é paradoxal, mas você sempre é, sem se tornar contraditória. E nunca dá pra saber o que diabos você tá pensando porque quando eu tento olhar nos seus olhos eu me distraio no tanto que eles são lindos, deixando tudo ao meu redor desaparecer e eu poderia ficar olhando eles por dias... Eu te conheço e te quero pra mim, mais do que imagina, provavelmente, mais do que você gostaria. Não adianta você vir dizer que desistiu de mim, nem nada do tipo, porque de todos os desastres que eu podia no mundo, eu escolhi você.

Beca apertou minha mão na dela.

- Não se preocupe não, menina. Eu não vou soltar enquanto você puder mantê-la sustentada aí. - Ela sorriu diferente desta vez, passou a mão pelo meu rosto e bagunçou meu cabelo, eu sorri de volta pra ela, levantei e a puxei, fazendo Beca levantar pra caber no meu abraço. - A Alice foi indo na frente de ônibus. Anda, vamos voltar pra casa.

quarta-feira

Capítulo 9 - Escadas (Parte 3)

Decoramos toda a casa e eu sentei no primeiro batente depois de um belo e abençoado banho - posto que praticamente desfaleci de suor e falta de ar de tanto encher os balões cor-de-rosa que estavam espalhados por todos os cantos. Isa não parava de babar em cima do vestido que eu tinha dado para que ela usasse no aniversário. Di pondo as velas sobre as calóricas camadas de chocolate na cobertura do bolo e Alice pondo o granulado nos brigadeiros quando a campainha tocou pouco depois das cinco da tarde.

Di me olhou amedrontada, Alice engoliu no seco, eu tremi com um medo que eu nunca imaginei sentir. E Isa, bom, Isa foi abrir com um sorriso de orelha à orelha e seu vestido novo, a porta sem sequer notar toda a tensão, mas graças ao bom Deus eram só duas ou três amiguinhas (não me dei o traballho de contar) que tinham se adiantado.

- Sinceramente eu não tenho a menor idéia do que eu tô fazendo aqui. - Falei pra Alice, sentando ao lado dela, enquanto chegavam mais e mais amiguinhos. - Ela vai chegar a qualquer minuto, e vai me expulsar à vassouradas.

- Você está aqui porque você estava com saudades, e porque é o aniversário da sua irmãzinha. Escândalo a gente sabe que ela não vai fazer, ela não vai acabar com a festa da Isa. Fica calma e pára de comer os brigadeiros!

- Por via das dúvidas, eu vou logo lá em cima trazer as malas pra baixo pra não parecer que a gente dormiu aqui, aproveitando que já tá tudo arrumado lá em cima. - Afanei mais um brigadeiro pronto, levantei da cadeira e comecei a subir as escadas, quando:

- Eu não vou perguntar o que você está fazendo aqui. - Um arrepio ruim andou por toda a minha espinha dorsal e tomou conta de toda a minha alma. Eu ainda estava de costas, não consegui me virar. - Não sei quem te convidou e prefiro continuar não sabendo. Quando acabar o aniversário da minha filha, você por favor pegue suas coisas e volte pro lugar que você está vivendo seja lá onde for.

Eu respirei o mais fundo que consegui descer. Dei meia volta. Lá estava ela, ainda a mulher mais linda do mundo, parada e me olhando com seu típico ar superior como se tivesse algo fedendo por perto.

- Tudo bem, dona Sônia, a senhora não precisa se preocupar. Assim que acabar eu vou embora, vou continuar sem estragar sua vida perfeita com a sua família perfeita. - E reuni todo o sarcasmo e ironia existentes no meu lado negro num sorriso alegre.

- Como queira, eu só não quero você aqui. - Minha mãe se deu o trabalho de me dispensar um sorriso educado e saiu do meu campo de visão sem se importar, jogando na minha cara a pior espécie de essência destrutiva que se pode direcionar a alguém: o desprezo, mais conhecido por alguns como indiferença. Sutil e apático modo de jogar alguem no chão, chutar suas costelas, cuspir diretamente no seu rosto e sair como se nada tivesse acontecido.

Servi refrigerantes, salgadinhos e brigadeiros - derrubando boa parte deles, obviamente. Fui pedida em casamento por um lindo garotinho entre sete ou oito anos de idade. Corri e vomitei no banheiro uma ou duas vezes, quando encontrava o olhar não-arrependido da minha mãe, me achando a mais tapada criatura do mundo por ter tido a esperança que seria diferente. Ele, o marido dela, por acaso também estava lá, imundo por dentro porém impecavelmente vestido com uma de suas camisas cafonas que não combinava com a calça igualmente horrorosa.

Praticamente todo mundo já tinha ido embora. Eu, Alice e Di tentávamos juntar o lixo e arrumar a bagunça deixada na sala, Isa tinha adormecido no seu quarto em cima dos presentes espalhados pela cama.

- Eu não entendo a dificuldade desses pirralhos de acertar a porcaria do papel no cesto de lixo. - Alice disse enquanto varria.

- Eu me faço a mesma pergunta desde que me entendo por gente, acredite Lice. - Nós três rimos. - Beca, você pode ir lá na cozinha buscar a pá? - Concordei e fui atravessando o corredor quando ouvi aquela voz que me causava tanto nojo discutindo com minha mãe.

-... E pelo amor de Deus, o que é que ela está fazendo aqui? Pensei que tinha deixado bem claro pra você, Sônia. Esta sua filha não vale nada, eu não a quero perto da minha menininha, nem ela, nem suas amigas igualmente devassas. A gente não sabe nem o que diabo ela anda fazendo por lá!

- Isa chamou ela, eu não pude fazer nada. Eu não queria ela aqui tanto quanto você. Até mais se possível. Isa é minha filha, nossa filha. Eu não tenho nenhuma outra. - Ainda era a mulher mais bonita do mundo ali, mas desde muito tempo eu não fazia a menor ideia de quem ela era.

- Então por quê não a mandou embora de uma vez? - Ele perguntou inquisidor em todo o seu ar de superioridade, olhando para sua mulher submissa e desprezível que não sabia o que lhe dar em resposta. Eu não resisti.

- É, dona Sônia. Por que não mandou embora a piranha exilada da família assim que a viu? Ah, é mesmo, que absurdo para a alta sociedade na vizinhança, um escândalo a periguete ser expulsa pela segunda vez de casa justamente na festinha de aniversário da princesinha da casa.

- RETIRE-SE DAQUI IMEDIATAMENTE! RETIRE-SE DA MINHA CASA! - Ele gritou cuspindo. Eu rangia os dentes sem conseguir medir o ódio que se apossava de mim quando Alice e Di correram para a cozinha.

- Vamos embora daqui, Beca. Já chega. - Alice sussurrou na minha orelha segurando o meu braço. - Foi uma péssima idéia, me desculpe.

- Beca, não vale a pena. - Di falou como se por um acaso eu fosse prestar atenção, soltei Alice do meu braço e continuei.

- Sinto muito, Sr. Sou-Adultero-Prepotente-e-Espanco-Minha-Querida-Esposa-Por-Plena-Diversão, até onde eu sei a escritura desta bela casa ainda é no nome da minha adorável ex-mãe, se alguém pode me expulsar (outra vez) daqui, é ela. - Ele pegou o celular e discou um numero de três digitos rapidamente, levando o aparelho à orelha. - Se quiser chamar a polícia, eu tô de boa. Mas é uma cidadezinha pequena, as pessoas comentam, não ia ficar bem pra vocês dois nas colunas sociais, além do mais eles iam AMAR ver todas as provas de agressão doméstica que eu guardei esse tempo todo, não é mesmo?! SEU RIDICULO. - Ele desligou quase que automaticamente, sua cara de cavalo quase roxa de tanta raiva pulsante nas têmporas.

- Anda Beca, vamos sair daqui. Por favor!

- Alice, eu não vou sair daqui antes de dizer tudo que tá aqui engasgado!

- Quem você pensa que é pra chegar aqui achando que pode falar o que quiser?! - Ela finalmente resolveu se manifestar, andando até mim. - VOCÊ NÃO É NINGUEM PARA NÓS. VOCÊ NÃO É NADA PARA MIM.

- Que bom que pelo menos neste quesito nós estamos em pé de igualdade, não é mamãezinha querida? - Eu senti pela segunda vez a raiva, a mágoa e a ignorância esquentarem o meu rosto, sob a mão dela, em mais um tabefe. Mas ao contrário da outra vez, eu não hesitei. Andei ainda mais pra perto, até meu nariz ficar a dois dedos do dela, com toda a coragem que eu não tinha em mim, um coração acelerado a ponto de doer fisicamente, uma bochecha ardendo, pernas e mãos tremendo loucamente. Mas eu PRECISAVA falar tudo. - Pouco me importa o que você acha ou deixa de achar de mim, mas quer saber qual é o meu maior orgulho? Eu nunca vou me deixar ser igual a você. Porque eu não preciso da opinião alheia para ser feliz, ou melhor, pra encenar uma felicidade inexistente. Eu aprendi que eu não preciso me humilhar para um homem DEPLORÁVEL pra me sentir mulher. Eu não preciso fingir que as pessoas são descartáveis. Eu não preciso depender de ninguém. Aliás, eu tenho vivido muito bem se é do seu interesse saber. Sou a melhor da minha turma na universidade, tenho me sustentado bem, até arrumei um emprego. Porque mulheres DECENTES vão atrás do seu próprio sustento, e não deixando sua liberdade de viver pra ser subordinada a um desgraçado desses a vida toda, abrindo mão da felicidade ou até mesmo de uma filha pra fazer as vontades dele. Sabe mãe, eu tenho morado com a minha família, só que eu aprendi uma coisa: Família não é aquela em que a gente nasce por acaso (porque se fosse isso, eu estaria bem ferrada), nem mesmo são os que escolhemos (porque somos humanos e podemos escolher as pessoas erradas com o nosso julgamento imperfeito). Família mesmo são aquelas pessoas que nos escolhem, e não nos deixariam sozinhos no mundo de forma alguma, e só Deus sabe o quão agradecida eu sou por terem me encontrado antes que eu ficasse a à mercê de, ou me tornasse, alguém como você. Até nunca mais, Dona Sônia.

Saí da cozinha, passei pelo corredor, sem esperar Alice peguei minha mochila, e sai correndo de pés descalços pela rua deserta, com as mãos ainda tremendo, os pés formigando, o choro travado na garganta, porém antes de todos esses e principalmente: com a alma lavada.

domingo

Capítulo 9 - Escadas (Parte 2)

Saudade era pouco quando eu procurei uma palavra pra definir o que eu senti, depois do jantar, ao ver Di cobrir uma Isa que dormia numa paz tão doce, dar um beijo de boa noite na testa dela, depois de carregá-la até a cama. Era o que ela fazia quando cuidava de mim, tanto tempo atrás. Uma eu preguiçosa costumava fingir estar dormindo só pra ela me trazer no colo.

Ela me pegou olhando do vão da porta rosa, perdida em todas aquelas memórias de quando eu ainda me sentia da família, tentando prender o choro, mas uma lágrima traiu o movimento e caiu, suicida e solitária, escorregando no meu rosto. Di olhou pra mim como quando eu era criança, me danava no chão e esfolava o joelho, mas me fazia de forte engolindo o choro enquanto ela passava Merthiolate nas minhas perebas.

Não precisávamos de palavra alguma, ela me abraçou e eu chorei a saudade, o joelho esfolado, chorei o tempo chuvoso do lado de fora fazendo barulho na janela, a amizade, a distância, chorei Sal, Bruno, chorei a indiferença que tanto me fazia implodir, só que sem precisar me esconder como fazia pra boa parte do mundo. Eu inundei o ombro dela, chorando todas aquelas mágoas, lembranças e - nem mesmo por um segundo, ela soltou do abraço, exatamente como antes. Eu sabia que não precisava ter vergonha de chorar do lado dela, Di não era como o resto do mundo, ela era um pedaço de mim.

Eu ri enxugando as lágrimas, ela sorriu balançando a cabeça, com tanta saudade nos olhos - imensamente castanhos - quanto tinham nos meus.

- Eu sinto tanta falta.. Ela deve sentir também, Beca.

Eu dei de ombros e continuei rindo sem motivo algum, ela beijou minha testa, e saiu andando pelo corredor de paredes em azul tão claro. Morta de sono, me arrastei por cada degrau da escada, tentando não prestar atenção no que Alice falava ao telefone - sem sucesso algum, obviamente:

- ...Mas eu acho que ela vai ficar bem sim. - Ela concordava com a voz do outro lado da linha. Voz que eu sabia muito bem de quem era. - Não vejo a hora de te abraçar, de sentir seu cheiro, de beijar você... Eu também já vou dormir também, vou sonhar com você... - Alice sorriu um sorriso diferente dos que eu me lembrava e ninguém conseguiria ter noção do quanto as quatro palavras seguintes àquele sorriso me apavoraram. - Eu tambem te amo, Sal. Boa noite e durma bem, meu anjo... Tá... Eu vou sim... Tchau.

Alice desligou e eu tratei de subir o resto da escada, indo na direção do meu antigo quarto e me jogando na cama que já não parecia mais tão minha, assim como tudo naquela casa. Fechei os olhos, sentindo um aperto no peito, sabendo o quanto iria ser difícil dormir sob este teto. Principalmente quando eu não tinha pra quem ligar pra dar boa noite, e infelizmente, este era o caso.



Acordei transtornada com uma sensação terrível de estar num deja vu, abri meus olhos e vi, as paredes vermelhas que tanto mamãe se recusara a pintar por não ser muito adequado para a moça direita que ela tão loucamente desejava que eu fosse, juntas à que costumava estar tomada de pôsteres e fotos - que eu tratei de remover e pôr numa caixa no dia que fui embora, e agora jazia branca, sem vida.

Alice dormia quieta no colchão ao lado da cama, eu levantei e andei até meu velho guarda-roupas, tentando não fazer barulho e é óbvio que a porta rangeu loucamente quando eu a abri devagar. Ainda guardava o mesmo cheiro bom de roupa recém lavada, trazendo mais uma vez à minha cabeça o assustador sentimento de estar em "casa" outra vez.

Olhei bem, parecia que alguém havia mexido, as roupas que restaram ja não estavam mais nos cabides. Então me desesperei pra checar, com o coração acelerado, abri a segunda gaveta e ainda estava lá. Tão cheia de poeira a ponto de quase não dar pra ver o preto da caixinha, segurei nas mãos e soprei o descaso do tempo que estive longe e rodei a chave uma, duas, três vezes, delicadamente. E ela abriu, em silencio, deixando a bailarinazinha girar ao som de uma melodia calada, guardando meus tesouros secretos.

Uma correntinha fina de ouro - herança da minha vó, tão frágil que dava pena de colocá-la na mão, um pingente em forma de gota que eu achava lindo demais pra merecer carregar no pescoço. Uma folha de caderno dobrada e rabiscada com o meu primeiro croqui de um vestido, meigo, feito no meio de uma aula de química no primeiro ano. A pulseira da sorte, que eu e Alice haviamos feito, uma pra cada, na quarta série, a minha azul com vermelho e a dela preta e branca.

Uma foto minha, horrorosa, com sei lá, 12 anos. Uma foto engraçada de Alice e eu fazendo careta pra câmera de tia Déia, com a cara melecada de Frutili, aos provaveis seis aninhos a julgar pela adorável falta de metade da minha sobrancelha esquerda. Uma de Marcela nos ombros de Breno, Bruno comigo no colo, e Alice implícita por ter tirado a foto, no aniversário de 15 anos dos gêmeos. E debaixo de todas elas só mais uma fotografia, minha mãe segurando Isa recém-nascida nos braços, com um sorriso no rosto nunca dirigido a mim, mas mesmo assim eu não conseguia deixar de amar aquela foto.

segunda-feira

Capítulo 9 - Escadas

As paisagens passavam muito rápido pela janela do ônibus, Beca tinha os olhos fechados e os fones na orelha se (e me) odiando por ter que estar alí. Eu sabia como era pra ela estar indo pra lá de novo, afinal eu estava na ultima vez e "agradável" não era bem a palavra que poderia definir a possibilidade daquela sensação novamente.

Gritos e insultos ecoavam naquela memória que eu tinha guardada há tanto tempo, e a julgar pela veia tensa que pulsava freneticamente na testa de uma Rebeca aparentemente calma e anormalmente quieta, tudo aquilo passava pela mente dela também.

- Eu não sei se devo fazer isso, Lice. - Ela disse no desespero que tentou disfarçar desde que havia concordado em vir, assim que descemos do ônibus, com os olhos cheios d'água e um tom tremido na voz.

- Eu tô com você, Beca. - Eu tentei um sorriso encorajador, como se o que eu tinha acabado de dizer fizesse alguma diferença. - Vai ficar tudo bem. E se não ficar, bom, eu ainda vou estar aqui, eu acho que sempre vou estar aqui. - Beca abriu os braços e eu senti o peso dos nossos 200 anos de amizade nos meus ombros naquele abraço que ela me deu. Então tomamos a rua certa a pé carregando as mochilas e os corações na mão, tão ou mais apreensivos quanto estavam antes de sair de casa, o dela muito mais que o meu, imaginei. Era preciso que ela tentasse, era necessário.

-

Quase meio-dia quando chegamos em frente a casa. Eu reuni toda a minha coragem e toquei a campainha, a mão de Alice segurava meu ombro quando alguém girou a maçaneta e a porta abriu.

- Becaa! - Gritou a garotinha num sorriso banguelo pulando no meu pescoço desesperada por um abraço. - Eu pensei que você não ia vir, mas você veio, você veio Beca! Quando eu liguei e pedi pra Alice te trazer, eu... Não acredito que veio!

- Peraí, como é?! - Desatei os braços de Isa do meu pescoço delicadamente, confusa - Você disse que minha mãe tinha ligado, Alice!

- Foi ideia minha Beca, não brigue com ela, eu queria que você viesse! - Falou Isa puxando minha mão freneticamente. - Eu precisava de você aqui.

- Ela pelo menos sabe disso?! Ela sabia que eu ia vir?! - Era perfeitamente notável o tom de desespero na minha voz, Alice e Isa se entreolharam nervosas. Eu simplesmente cuidei em botar minha mochila nas costas novamente, dar meia volta e começar minha caminhada de volta até a rodoviária.

- Rebeca! - As duas me chamaram, eu ignorei e continuei andando. Ouvi passinhos rápidos correndo atrás de mim, então parei.

- Eu não vou deixar ela te fazer mal, Beca.

- Você não entende, Isa... - Eu disse, me agachando pra ficar da altura dela.

- Claro que eu entendo, Beca! Você é minha irmã! Tá, meia-irmã, tanto faz, mas eu vou te proteger! É o meu aniversário de 7 anos, eu preciso de você aqui! É importante para mim! - E me abraçou outra vez. Não tinha como não ficar. E isso era uma pena, pra mim.

- Anda, vamos, esse sol tá me matando! - Eu disse, levantando e bagunçando o cabelo dela. - Eu te trouxe um presente.

- Só um? - Ela disse olhando pra mim imitando minha cara de insatisfação, botando o cabelo no lugar.

- Tá ficando abusada, hein? - Nós duas rimos, até entrar na casa. Alguém ligou um liquidificador. - Tem alguém além da gente aqui?

- Só a Di, lá na cozinha. - Isa falou, sabendo que eu correria pra lá automaticamente.

Tudo ainda era do mesmo jeito, as paredes rosadas, os azulejos no chão. Tudo ainda era do mesmo jeito, menos as fotos na parede - nenhuma delas tinha eu. Não que eu me importasse. Eu simplesmente passei por elas e cheguei à cozinha.

- Sabe que eu nunca consegui encontrar uma vitamina de cajá como a sua, não sabe Di?

- AH! MEU DEUS!!! REBECA! - Di soltou o liquidificador e correu pra me dar um abraço. - Eu não achava que você iria vir, mas olha só, aqui está você! Quando a Isinha disse eu pensei que... Ah meu Deus, Beca, você está aqui! Eu pensei que... Você está tão...

- Linda? - Sugeri.

- Cadavérica! Não tem comida onde você está morando?! Eu vou fazer um almoço maravilhoso para todas nós... Pelos nosso sempre tão bons tempos...

Os olhos dela estavam tão afogados em lembranças quanto os meus, afinal haviam sido 17 anos de convivência com a irmã mais velha que eu havia escolhido, até aquela bendita noite. Ela deu um tapa no meu braço.

- Como é que você sai daqui e não me deixa nem um número de celular verdadeiro?! Essa criança maligna e super-dotada - Di apontou pra Isa - quase sequestrou alguém na compania telefônica, movemos meio mundo pra conseguir o celular da Alice... Cadê a Alice?! Alice!

Di me soltou e correu pra abraçar uma Alice sorridente encostada no vão da porta.

- A Di arrumou o seu antigo quarto pra vocês.

- Isa, eu não acho uma boa ideia a gente ficar aqui... - Eu disse. - A gente pode ficar naquela pousada perto da praça, ainda é uma pousada, não é?

- Mamãe só chega amanhã à noite, fiquem aqui hoje, pelo menos hoje, não há com o que se preocupar. - Isa falou, ainda com seu sorriso sem um dente da frente.

- Fica, Beca. - Di disse. - Eu vou dormir aqui hoje também, estou cuidando da monstrinha desde o começo da semana.

- Mamãe deixou de te achar uma má influência? - Perguntei irônica.

- Não, mas eu era a única babá disponível que não cobrava olhos da cara pela semana inteira neste fim de mundo. E é mais fácil eu ser a influenciada quando se trata dessa criaturinha banguela!

- Claro! Essa aqui é das minhas! - Falei agarrando Isa pelo pescoço e fazendo cafuné, bagunçando todo o cabelo dela.
- Vamos, onde está aquele almoço maravilhoso anteriormente citado?! Eu tô morrendo de fome! - Isa disse enquanto lutava pra sair da minha chave de braço.

- E então Beca, vamos ficar? - Alice me perguntou, eu levantei a sobrancelha.

- Tá, tudo bem. Mas só hoje, certo?! - As três sorriram, e eu fui obrigada a sorrir também.

- Anda, vamos deixar as coisas lá em cima. - Alice disse, e eu a segui.

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 6)

- Bom dia. - Ela não respondeu. Marcela me levantou a sobrancelha e Alice olhou pra mim como se quisessem me quebrar um fêmur.

Ela só levantou deixando seu café da manhã intocado sobre a mesa, pegou suas coisas e saiu sem uma palavra. O suficiente pra destruir cada pedaço de mim.

- Eu perdi alguma coisa? - Verônica perguntou enquanto enchia um pão com requeijão, olhando para mim como se eu tivesse causado o holocausto, assim como as outras duas.

- É melhor eu ir. - Falei, sem muito entusiasmo. Depois corri porta afora atrás dela.

Linda, andando irritada. Uma camiseta de alguma banda avulsa que provavelmente só ela conhecia, cabelo solto cujo cheiro era trazido pelo vento na minha direção. Era cedo demais para haver alguém na rua, eu comecei a me perguntar se ela teria dormido, se ela teria perdido o sono, por minha causa - Mas não consegui decidir quem vencia às porcentagens de bom ou ruim nisso. Ela parou de repente. Então eu também parei.

- Beca... - Ela olhou pra mim.

- Eu pensei em muitas coisas pra te dizer... Mas eu vou me poupar. Seria uma feliz escolha se você fizesse o mesmo.

- Você não precisa agir assim, Beca...

- Agir como?! Ser indiferente?! Nossa, onde será que eu aprendi?!... Bruno, olha: Eu desisto de você. Não se preocupe, quanto mais o tempo passa e cada vez mais gente faz o mesmo, você também começa a lidar bem com isso. Acredite, eu sei. - Levantou a sobrancelha, sorriu de lado, deu a volta, continuou o caminho e eu fiquei lá, deixando ela ir.

~

Era cedo demais, mas era a coisa certa. Eu o deixei no meio da rua, ele me deixou ir embora carregando o mundo nas costas. A partir disso, tudo parecia estar mais vazio que o normal - O lugar, as aulas, as conversas, as pessoas... Acho que consegui bater todos os meus recordes de ignorar o maior número de pessoas num determinado espaço de tempo.

Curtindo a minha fossa de pessoa mal-amada que eu realmente era, com fones de ouvido que tocavam uma ruedeira qualquer, sentada numa mesa reclusa do restaurante que ficava em frente à universidade, na hora do almoço. Só vi aquele monte de gente puxar as cadeiras e sentar na mesma mesinha que eu.

- Olá. - João falou sorrindo, arrumando os óculos, já sentado do meu lado. Alice do outro lado, chegou jogando moleton, mochila e caderno em cima da mesa. Sal deixou o violão encostado na parede e sentou do lado de Alice. Verônica folheava muito entretida uma apostila avulsa que a professora havia lhe dado e Marcela puxou a cadeira do lado de João.

- Oi. - Disse, dando o máximo de mim para não soar ignorante. Eles falavam muito, rápido e alto, e eu não estava com a menor vontade de tentar acompanhar.
Quando já estava ficando na hora de ir embora, eu perguntei: - Alice, que horas saímos amanhã?

- O ônibus sai às nove e vinte. - Ela respondeu, antes de roubar mais uma garfada no imenso prato self-service de Sal.

- Ônibus? - Sal olhou pra ela, e perguntou pra mim - Que ônibus?

- Vamos passar o fim de semana na casa da mãe da Beca. Eu te disse ontem. - Alice respondeu, e limpou o sujinho no canto da boca dele com um guardanapo.

- Ah, foi mesmo. - Breno e Bruno apareceram na porta, eu aproveitei para levantar da cadeira e sair do lugar como desejava tão desesperadamente.

- Oi. - Bruno falou ao chegar na mesa, mas eu o ignorei, saí sem falar com ninguém e fui andando pra casa.


Arrumei minha mochila, meu guarda-roupas e a casa inteira aquela noite. Na verdade eu procurei qualquer coisa pra arrumar mesmo sabendo que não era nenhuma delas que ia me permitir arrumar minha vida desastrada. E esse, bem, era um belo de um desastre.

Todos saíram e eu resolvi ficar em casa, colocar todo o apartamento e todos os meus pensamentos em ordem, sozinha, como devia ser. Camisetas separadas por cor, saltos por altura e desilusões por ordem de chegada - ou talvez, fosse melhor dizer, partida. Louça e roupas lavadas em seus devidos lugares. Livros, cds e filmes em ordem alfabeticas na estante. Medos, segredos e angústias em potes destampados, nunca me dei muito bem quando a intenção era encontrar tampas, e isso também é válido para chinelos velhos ou metades de laranjas.

Talvez não deva ser como todo mundo diz, talvez haja gente que não está destinado a ter um amor, aquele amor de almas gêmeas, com cara de poesia famosa, recíproco e inacabável. Talvez eu até possa encontrar mais um milhão de caras por aí, mas eles sempre sejam só mais um milhão de caras por aí.

Adormeci sem querer que o dia amanhecesse, mesmo precisando que o fim daquela noite desesperadora chegasse o mais rapidamente possível.

quarta-feira

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 5)

- Eu sei que você não gosta de mim. - Foi assim, desse jeito. Eu estava subindo a escadaria desesperada pra me livrar da presença de Sal e todo aquele silêncio constrangedor que nos acompanhou da boate até aqui, mas minhas pernas pararam estagnadas no sexto degrau. Ele disse com um meio sorriso no seu rosto moreno, falando mais sério do que deveria parecer.

- An? - Foi tudo o que conseguiu sair da minha boca.

- Eu sei que você não gosta de mim. Porém, estou determinado a mudar isso. - Sal falava, nervoso e gesticulando rapidamente. - Agora que a gente vai trabalhar junto e eu amo a sua amiga e...

- Ama. - Repeti pra ver se eu me convencia e parava com essa fixação por ele. - Você a conhece há o quê? Um mês?

- Não é uma coisa tão difícil... - Ele sentou no batente da escada, ficando vermelho e encabulado. - Pior que amá-la é tentar convencê-la de que eu falando a verdade.

- Mas o que eu tenho a ver com isso?! - Perguntei, começando a ficar agoniada com o rumo que aquela conversa tomaria. Sal sorriu sem graça tão lindo, tirou a bolsa do violão das costas e eu sentei pra ouvir a resposta.

- Ela fala sobre você. Fala tanto e tão bem sobre você, sobre as coisas que você diz, que eu pensei que você... Eu sou um idiota que nunca amou ninguém. Daí ela apareceu, meu mundo virou de cabeça pra baixo e eu não tenho a menor idéia de como lidar com isso. Eu preciso ver que ela está sorrindo pra poder sorrir com a consciência limpa, preciso protegê-la pra poder me sentir protegido. Talvez eu não esteja explicando muito bem... Sabe uma bússola? Pronto, Alice é o meu norte.

Inveja. Eu vi em mim a inveja de cada sílaba rouca e sincera que saía desconsertada da boca de Sal. Eu queria tomar elas e a boca que as dizia, e sair correndo pra onde ninguém pudesse tomá-las de volta. Eu senti meu coração bater tão devagar que eu pensei otimista que ele resolvesse parar de vez.

- Você já disse tudo isso pra ela?

- Não.

- Então por que você me disse? - Perguntei, confusa.

- Eu não sei. - Ele respondeu, mais confuso do que eu, e riu. Ele riu rouco com cara de desespero. Eu estiquei a mão e baguncei o cabelo dele em empatia, afinal nenhum de nós dois estávamos habituados a ter... Sentimentos.

Então alguém abriu o portão e meu coração continuou inerte. Misture abandono, com ciúme e gosto de traição. Foi o que eu senti quando Bruno empurrou o portão, e segurando a periguete bandida pela mão. A mão dele segurava a mão dela.

- Boa noite. - Disse a periguete decotada com sua voz sensual de locutora de motel (e eu nunca nem fui num motel). Eu não consegui ter nenhuma reação além de tirar as mãos do cabelo de Sal.

- Boa.. Noite. - Bruno disse, tenso, olhou ciumento para Sal que retribuiu a saudação, e evitou o meu olhar.

Como se não precisasse me dar explicação alguma. Ele não tinha que me explicar nada. Nós não tinhamos nada. Nós não éramos nada. Eu me senti um nada, quando ele murmurou um "com licença" qualquer e saiu levando a periguete avulsa rumo ao seu apartamento. Ótimo. Tudo o que eu precisava.

- Vocês não estavam...? - Sal tentou começar a pergunta que eu estava fazendo a mim mesma, mas desistiu no meio do caminho. Continuei calada, olhando pra porta do apartamento de Bruno. - Bom, obrigada por me ouvir. Você deve estar cansada... - Ele levantou da escadaria. - Eu ja vou indo...

- Desculpa pela quebra súbita do diálogo. Tenta falar aquilo pra ela. Se eu acreditei, é bem provável que ela se convença também... Boa noite.

Tentei forçar um sorriso mas não deu muito certo. Não consegui decidir o que era exatamente mais difícil, se era deixar Sal e tudo aquilo que ele não sentia por mim sair pelo portão ou ver Bruno entrar porém não pra ficar comigo. Belo dia, Beca. Belo dia.

Subi para o apartamento, ignorei as meninas jogando baralho com Breno na sala e voei para a segurança da minha cama dando uma ultima olhadela no relógio na esperança de depois me afogar no sono: Meia noite, em ponto - pena que não havia ninguém pensando em mim.

Nem cinco minutos depois, Alice e Marcela entraram no quarto.

- Pode abrir os olhos, Beca. - Alice mandou e Marcela completou sentando na minha imaculada cama:

- A gente sabe que você não tá dormindo. - Eu respirei fundo, afundei minha cara no travesseiro e sentei dando espaço para Alice sentar também.

- Tudo bem. Eu conto.

-

Má ideia, má ideia, má ideia. Eu ficava repetindo pra mim mesmo enquanto fechava a porta do apartamento sorrateiramente, vendo ela olhar pra mim como se eu tivesse acabado de cortar lentamente um pedaço do seu coração com uma faca cega. Só que ELA tinha começado, mas eu só começava agora a me perguntar se ela sabia que tinha.

- Bom... Por onde co-começamos? - Perguntei nervoso, segurando um dos livros e começando a folhear. Gabi olhava pra mim como se eu fosse algo de comer, pegou o livro das minhas mãos e jogou pro lado e me agarrou.

O lado negro com a força dos hormônios em fúria insana quase não me permitiram afastar Gabi, seu cabelo loiro e seus seios fartos, mas eu fui mais forte.

- O que foi? - Ela perguntou confusa, quando eu a afastei um pouco depois dela mesma ter posto minha mão em sua bunda (que não era pequena), até porque se eu não parasse naquela hora, não sei se teria auto-controle suficiente para parar.

- É que... Me desculpe. - Eu disse, tirando ela de cima de mim e sentando no sofá, ainda muito nervoso. - É que...

- Oh... - Ela falou, sem jeito. - Não se preocupe. Às vezes essas coisas.. Acontecem, ér... Não é mesmo? Talvez eu não seja o seu tipo...

- Não não. Não é isso não. Você é linda, e gata, maravilhosa e eu provavelmente adoraria passar o resto da noite com você, se eu não estivesse fazendo isso pelo motivo errado.

- Humm... Deixa eu adivinhar, a morena na escadaria?

- Tá tão na cara assim? - Perguntei envergonhado bagunçando o cabelo, ela abotoou o sutiã e sentou do meu lado, sorrindo.

- Quer me contar o por quê de nós não estarmos nos pegando neste sofá agora ou eu vou ter que ir embora daqui sem sequer ouvir uma boa história?

Eu ri sem humor, Gabi foi à geladeira pegou duas convidativas cervejas, só então eu comecei a contar.

~

- Eu saí com o André. - Falei rapidamente, já sabendo o que viria a seguir.

- André, que André?! - Marcela perguntou surpresa.

- André, AQUELE André? - Alice no mesmo tom. - O LINDO que faz odonto ou outro André?!

- Esse mesmo. - Eu disse afundando mais outra vez o travesseiro na minha cara.

- QUANDO?! - As duas ao mesmo tempo.

- Segunda, depois da última aula.

- Aquele dia que você chegou depois das onze! Por isso não queria dizer onde tava! - Alice observou seguida por Marcela:

- Eu sabia que não era boa coisa... - Dei um nada carinhoso beliscão nela - Ai.

- Eu peguei o ônibus errado, que EU JURO por acaso, era o dele e nós começamos a conversar, então pra não perder a viagem ele me chamou pra jantar qualquer coisa perto da casa dele. A gente perdeu a noção da hora conversando e eu peguei o ônibus certo de volta. Só isso.

- Ah Beca, vai dizer agora que tu não pegou? O lindo mais LINDO daquela universidade e nem um beijo pra ficar de lembrança, ou, sei lá, de prêmio?!

- Marcela! Eu .. Tava ficando com o Bruno, não sei se vocês lembram. Não acho que eu me perdoaria se ficasse com outra pessoa sabendo que ele gosta de mim e que (mesmo informalmente) eu .. - Dei de ombros - Sei la.. Tava com ele.

- "Tava"? Como assim "tava"?! - Alice perguntou.

- Ontem eu caí na besteira de falar isso pra ele. Ele disse que não se importava, que tudo bem, porra, eu não fiz por mal... E agora deve tá lá comendo horrores a periguete.

- Lá aonde, menina? Do que você tá falando?! - Disse Marcela, confusa.

- Gabi. A periguete que estuda com o João. - Marcela e Alice fizeram careta ao mesmo tempo. - Vi os dois conversando hoje de manhã, e agora ele chegou alí de mãos dadas com ela, passou por mim como se nada tivesse acontecendo, levou ela pro apartamento e agora eu nem quero tentar imaginar o que eles tão fazendo lá!

Nós três ficamos em silêncio por quase vinte minutos.

- A viagem ainda está de pé, não tá? - Alice perguntou, eu confirmei, triste.

- Eu arrumei um emprego. - Falei. - Eu e o Sal, aliás.

Marcela me olhou entendendo que a última observação era só mais uma das notícias tristes daquele dia, enquanto alice me abraçava alegre, me dando parabéns.

domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 4)

Oito e vinte da noite. Pra variar, atrasado. Tinham umas quinze pessoas no lugar - Uma boate antiga da cidade que tinha sido fechado há muitos anos. Tinham deixado alguns panfletos no quadro de avisos da universidade, iam reabrir precisavam de funcionários novos.

O violão nas costas costumava me dar uma eterna primeira impressão de vagabundo, só que como eu já estava atrasado mesmo, um ponto negativo a mais, um a menos não ia fazer lá muita diferença - Eu precisava do emprego, eu tinha resolvido ser o cara certo pra ela, caras certos têm empregos.

Fui entrando na sala de espera apertada, e dei meu nome para uma mulher nada simpática que com certeza se perguntou que tipo de pessoa teria um condimento como sobrenome, mas ficou calada por educação.

- Eduardo Sal... Pra qual vaga? - Ela perguntou, pondo o cabelo vermelho encardido pra trás da orelha, apoiando a prancheta na cintura, estranha. - GoGo Boy?

- Não, não. Só garçom, por favor. - Falei educado, com um sorriso. Era o que tinha maior probabilidade de me contratarem, duas vagas de barman, quatro garçons e cinco garçonetes para a área vip, o resto eu nem li. Ela me deu um número e pediu que eu esperasse sentado em algum canto por alí, então eu fui.

Havia uma cadeira vazia ao lado de uma moça de cabeça baixa, entretida com um jogo no celular e batendo a perna nervosa pra passar o tempo mais rápido. Sentei lá pondo o violão de lado, ela continuou de cabeça baixa, escondendo o rosto com o cabelo e começou a me parecer extremamente familiar.

- Rebeca Albuquerque. - Chamou a mulher de cabelo encardido. - Pode ir! - A moça do meu lado (que agora eu sabia o porquê me parecia tão familiar) levantou da cadeira e foi até a sala com a porta de vidro azul. Ainda nervosa, andando um pouco mais rápido que o necessário.

- Boa sorte. - Eu disse baixinho, mas acho que ela não ouviu. Amarrou o cabelo num rabo de cavalo, adiantou um sorriso simpático diante da porta fechada, girou a maçaneta rápido e entrou.

Era amiga da Alice, a mais bonita das amigas dela - pra falar a verdade. A que não gostava de mim e eu não tinha a menor ideia do porquê. Desejei que ela arrumasse o emprego e que eu também, assim ficaria mais fácil tirar a má impressão que ela teve de mim e poderia fazer uma amiga sem más intenções - pela primeira vez em muito tempo.

~

Oito e vinte da noite. Eu já estou sentada nesta bosta de cadeira há mais de meia hora, esperando aquela vaca do cabelo encardido chamar meu nome pra fazer logo essa porra de entrevista pra eu poder ir embora dormir. Minha cabeça explodia tanto de dor de cabeça que eu me obriguei a desfazer o rabo de cavalo pra ver se a dor tinha dois dedos de boa vontade de aliviar.

O cara parrudo com cara de quem toma bomba sentado do meu lado mascava audivelmente um chiclete de melancia - GoGo Boy, aposto. A vaca batia na prancheta com uma caneta de gliter azul no mesmo ritmo que eu batia meu pé inquieto no chão, irritada. Alguém abriu a porta e entrou no lugar, eu fiz questão de nem olhar, devia ser outro Gogo Boy metido a gostoso. Continuei concentrando meu intelecto glorioso na cobrinha recordista do meu celular, e assim permaneci até que:

- Nome? - Perguntou a vaca com a voz mais pastosa do que sua cara, porém com um ar de excitação que me deixou curiosa para olhar.

- Eduardo Sal. - Ele respondeu rouco, num sorriso. Fudeu, fudeu, fudeu.

Eu levantei a cabeça para conferir. Moreno, cabelo curto, violão nas costas, braços musculosos, ombros desgraçadamente perfeitos e o meu coração disparado por baixo da blusa justa de flanela. Fudeu, era ele mesmo. A vaca encardida deu uma ficha pra ele e eu tratei de fingir que não estava alí.

Sal veio andando e sentou do meu lado sem me reconhecer, os anjinhos do bem e do mal na minha consciencia iniciaram uma guerra mediúnica no meu cérebro pra decidir se ele não ter notado a minha presença era uma coisa boba e ele só não tinha olhado direito ou eu era uma ridícula de achar que ele não tinha nada melhor pra fazer que ficar olhando pra ver se me reconhecia. Lógico que o anjinho do mal venceu e a dor na minha cabeça pulsou outra vez.

Alguém abriu a porta, e disse algo pra vaca encardida que chamou mais alto que o necessário:

- Rebeca Albuquerque. Pode entrar! - Respirei fundo e levantei rápido, e andei rápido também, na verdade o máximo que pude. Mas quase tropecei, bem no pé da porta de vidro azul, quando vi o reflexo dele no vidro e ouvi sua voz rouca sussurrando:

- Boa sorte. - Eu não olhei pra trás. Apenas parei bruscamente, amarrei meu cabelo no rabo de cavalo de novo, sorri sozinha do murro que o anjinho do bem deu mentalmente no anjinho do mal, girei a maçaneta rápido e entrei.

Aquele escritório tinha cheiro de carro novo, não me pergunte o por quê, mas tinha. Paredes em azul (no mesmo tom que o vidro da porta), grafitadas com letras de música de cima a baixo, um sofá de couro preto, e um cara muito charmoso, lá pelos 25 ou 30, com uma camisa do Ramones e a barba por fazer, sentado simpático atrás da mesa chique de vidro.

- Boa noite, senhorita... Rebeca, certo? - Confirmei, ainda sorrindo. - Sente-se, por favor. - Ele disse, apontando para a poltrona preta debaixo da luminária torta que descia do teto.

Eu sentei e ele ficou lá observando o currículo que eu havia mandado uns dois dias atrás, depois alternando entre os papéis que folheava e a minha aparência. Depois só minha aparência, a ponto de eu querer me afogar no ganges mentalmente por não ter passado mais maquiagem.

- "Inglês parcialmente fluente"... - O cara leu, depois olhou para mim com um ar desconfiado. - Você não mencionou nenhum curso aqui.

- Nunca fiz curso algum. - Respondi. Ele sorriu, levantando da cadeira visualmente confortabilíssima, andou até bem perto de onde eu estava, e sentou-se na mesa de vidro, me olhando de um jeito desafiador.

- So... Why just "half" fluent, Rebeca? - O meu provável futuro chefe perguntou, eu ja imaginava.

- I have a little bit of difficulty for complete sentences when I talk, but I can understand what I listen very very well. - Respondi prontamente, ainda com um sorriso.

- Eu tiraria o "parcialmente". Seu inglês me parece perfeito, aliás, seu currículo me parece perfeito, ótimas notas na escola, ótimas recomendações acadêmicas... Bem promissora, exceto por um pequeno detalhe: O que me faria empregar uma simpática moça de 19 anos de idade, universitária federal, no provável auge de sua vida social, sem a menor experiência para um cargo que requer tanta habilidade, num ramo que não é muito comum ver mulheres, para escravizá-la (no melhor dos sentidos, claro) às noites de terça, quinta, sexta e sábado atrás de um balcão? - Perguntou levantando a sobrancelha esperando uma resposta convincente.

- Eu aprendo rápido e tenho força de vontade o suficiente para me candidatar a uma vaga como essa. Além, lógico. do fato de ter contas a pagar como qualquer outra pessoa nessa cidade, além desse ser o melhor dos salários entre as vagas oferecidas, e... Creio que abstrair de algumas saídas a mais ou a menos com os amigos não vai ser lá uma facada tão sangrenta assim, e também nós costumávamos vir aqui antigamente, velhos habitos assim como as boas lembranças tendem a não morrerem nunca, não é mesmo?

- Olha... Você está a meio triz de ser contratada. - Ele avisou, eu continuei sorrindo. - Mas para isso você só precisa passar na última fase deste teste, fase esta que eu acho a mais absurdamente difícil.

- Posso saber qual é? - Perguntei curiosa enquanto ele me dirigia ao mini-bar por trás do suntuoso sofá preto.

- Prove que você pode servir um drinque, levar cantadas ridículas e ser psicóloga ao mesmo tempo. - E sentou num dos banquinhos da bancada, esperando que eu fizesse alguma coisa.

- Eu posso fazer isso - Falei - Se puder me falar qual drinque vai querer?

- Algo forte, por favor. Tive um dia bem cheio fazendo todas essas entrevistas irritantes... Tem idéia do quanto é difícil encontrar pessoas determinadas a trabalhar e lindas como você nesta cidade, com um pai que não te apóia em nada e um namoro mal-resolvido? - Ele perguntou simulando a situação e eu tentando não embebedá-lo assim logo de cara, afinal que lucro há nisso? O negócio era embebedar aos pouquinhos, uma dose por vez.

Conversamos por mais algum tempo, depois de três drinques bebidos pela metade e 10 minutos de psicanálise recíproca, eu fui contratada.

- A propósito, muito prazer Rebeca. - Ele falou estirando a mão. - Renato Roriz, seu novo chefe. Boa sorte com sua mãe e com rapaz da periguete.

- Boa sorte com seu pai, com o namoro e vamos levantar esse lugar outra vez. - Eu respondi apertando a mão dele, sorri, e sai pela porta de vidro azul pensando que o meu dia não tinha sido lá tão ruim assim... Até abrir a porta e ver Sal ainda lá.

A vaca chamou o nome dele logo assim que eu saí, ele levantou, só que no lugar dele ir direto pra porta azul, veio perto de mim e perguntou:

- E aí, conseguiu? - Confirmando com a cabeça eu não consegui deixar de sorrir. - Parabéns!

- Eduardo Saaal! - Repetiu a vaca da voz pastosa, apressando para que ele entrasse na sala.

- Você tem que ir, obrigada pela força e bom... Boa sorte. - Foi o que eu consegui falar sem parecer uma retardada, dei um murrinho amigavel no braço dele.

- De nada... - Ele foi abrindo a porta, eu me virei e comecei a andar para a saída, e então eu ouvi aquela voz rouca falando comigo outra vez. - Beca!

- Oi.

- Pode me esperar? - Ele perguntou.

"Não, diga não Rebeca. Diga que não. DIGA NÃO!" Gritava minha própria consciência, mas eu nunca fui lá muito boa em ouvi-la mesmo e... Porra, olha pra cara dele. Moreno, alto, bonito, sensual e ainda mais maravilhosamente abençoado ainda de ter aquela cara de cachorrinho que caiu da mudança e você tem a obrigação de se sentir tentada a pegar pra criar. O que eu consegui dizer?

- Tá. É. Pode ser. - Sal simplesmente sorriu virou e entrou. E lá volto para aquela mesma cadeira, com o celular nas mãos, no mesmo jogo da cobrinha, me odiando do mesmo modo que estava antes, só que agora eu tinha um emprego.

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 3)

Estava nublado e cheio de vento o caminho enquanto eu ia andando devagarzinho a caminho da escola comunitária. Carregando escondido lá no fundo da alma, que eu segurava com tanto empenho quanto eu segurava a bolsa em meu ombro, o amor que eu não tinha pra mim. Tentando me proteger, e aniquilar qualquer dor que fizesse mal, tentando me deixar parecer segura de mim - do que eu queria fazer, de quem eu queria ter. Tentando fingir que eu estava bem tanto quanto eu não estava. Eu carregava com pesar meu coração em passos tão vagarosos que a chuva fina que tinha começado a me acompanhar no meio do caminho vinha se tornando mais grossa a cada segundo, obrigando a reconstrução da estima por mim mesma a se apressar antes que alguém me visse.

Era um prédio antigo, o da escola comunitária, e o que tinha de antigo tinha de cheio de vida. Era um lugar, provavelmente o único lugar na minha vida inteira, que fazia algum sentido. Até agora.

Bruno vinha descendo a escadaria, com um sorriso safadamente doce na boca, o cabelo bagunçado molhado pela chuva. Lindo. E com uma periguete à tira-colo. Segurando os livros DELA. Mexendo no cabelo, jogando charme pra ELA, que tinha peitos maiores que o meu crânio. Um cabelo loiro nojento que ia até depois da cintura. Passando aquela mão de periguete dela pelo ombro DELE de uma forma safadamente oculta, rindo de um jeito chamativo que somente uma periguete pronta pra dar o bote fazia. E ele dando corda.

Eu olhava tudo do portão da frente, quase entrando a guarita do Seu Zé para me esconder e ter um ângulo melhor de espionar os dois. A chuva parou e eles tambem no meio da porra da escadaria. Ele não parava de sorrir, ela não parava de ter cara de periguete - nem por um segundo sequer. Conversando qualquer coisa idiota sobre algo que havia passado de manhã cedo na tv, imagino. Ela não tirava as mãos dele, que parecia gostar, virando o pescoço pro lado, ao bagunçar o cabelo, como costumava fazer quando se sentia ér.. bem.. Você deve imaginar como.

Eu indignada, mordia meu lábio inferior com tanta voracidade e ciúme que se isso fosse durar mais de cinco minutos, com toda a certeza eu terminaria por arrancar um pedaço. Na ponta dos pés, tentando olhar pela janela na guarita que ficava bem de frente praquela cena patéticamente revoltante. A periguete anônima que eu não conseguia ver o rosto bem o suficiente pra saber quem era deu sua última gargalhada esganiçada - provavelmente por alguma piada ridicula e sem graça que ele tinha me ouvido contar e agora estava usando pra ganhar aquela periguete ridícula. Ela virou o cabelo pro lado e foi chegando tão pertinho dele que eu podia ir lá e sentar a mão naquele nariz perfeito ridículo que com certeza tinha comprado, e sussurrou alguma insinuação pornô envolvendo seus cabelos loiros e os ombros perfeitos de Bruno e todos os atributos que viriam de brinde com ambos os itens dentro de um quarto medonho em algum motel de médio preço num canto recluso na cidade, beijou indecentemente sua bochecha - se é que isso é possível - pegou seus livros ridículos que provavelmente ela nunca leu nem vai ler na vida das mãos dele ainda abestalhado pela qualquer coisa que ela sussurrou na orelha dele sem tirar aquele sorriso safado da cara, e saiu rebolante escada abaixo, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar um prêmio nobel da periguetagem.

Eu pensei em 17 maneiras diferentes de se quebrar a clavícula de uma periguete sebosa. Em 21 modos de arrancar seus olhos verdes e cintilantes com uma mão amarrada nas costas. Em 134 jeitos de arrancar seus peitões e nariz falsos usando pinças, tesouras e grampeadores de escritório. Mas apenas fiz um aceno de cabeça quando ela passou do meu lado dizendo "Bom dia" deixando à mostra seus dentes de branquamento artificial caro enquanto Seu Zé, o porteiro sem dentes da frente, deixava seu queixo cair olhando pra bunda malhada de academia cheia de periguetes como ela, que passava indo embora. E eu acabara de chegar.

- Bom dia. - Bruno falou pra mim assim que a periguete saiu e eu entrei em seu campo de visão.

- É, pode ser. - E continuei subindo a escadaria ignorando a presença dele, andando atrás de mim tentando acompanhar meus passos apressados nos corredores em busca da sala de desenho.

- Tudo bem com você? - Ele perguntou, tentando contato.

- Aham.

- Sua aula é só à tarde? - De novo.

- Aham.

- Aconteceu alguma coisa? - Ele não desiste?!

- An an.

- Tem certeza disso? - Mas será possível?!

- Aham.

- Eu fiz alguma coisa pra você não querer falar comigo?

- An an. - Dei de ombros, negando e obviamente mentindo.

- Certo, entendi. - Finalmente se deu por vencido revirando os olhos. - Tchau. Até.

- Tá. Tchau. - Respondi, ele seguiu caminho por um corredor diferente, me deixando sozinha com todo aquela angústia, ciume e mau humor dentro de mim.

Eu nunca fui de me afetar pelas ações das pessoas ao meu redor, nem andar magoada, com cara de triste por ai - Quem é você, e o que você fez comigo? Eu não sou assim, nem é agora que eu vou começar a ser. Soltei meu cabelo do rabo-de-cavalo, empinei o nariz e sai continuando naquele corredor do segundo andar como se nenhum dos andares do meu castelo estivessem desmoronando, mesmo que fosse exatamente o contrário.

Eu tinha duas aulas de desenho pra dar de manhã, cinco da universidade pra assistir à tarde e uma entrevista de emprego para ir à noite. Alguém pode pelo amor de Deus me desejar sorte? Porque do jeito que a minha tá hoje, eu só amanheço viva a poder de reza.

quarta-feira

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 2)

- Tô namorando. - Primeira frase que eu ouço nesta quarta-feira amanhecendo, Alice. Claro que eu a recebi antes sequer de abrir meus olhos direito, acordar com um tabefe desse no meio da cara assim, sem nem bom dia. - Desde ontem.

Ela contou, com um sorriso sem tamanho no rosto que agora parecia mais radiante, mais feliz, e mais um monte de equivalentes a isso. Eu não podia, nem era capaz de tirar aquele sorriso dela, apesar de (de certa forma) desejar incontrolavelmente o motivo que a deixava tão absolutamente maravilhada.

Resolvi ser a boa amiga que eu não era, tentei sorrir na mesma intensidade, esfreguei os olhos e dei um abraço nela como ha muito não fazia. Eu sentia saudade da minha melhor amiga mesmo ela estando toda santa noite dessa vida na cama vizinha a minha, estava silêncio ainda, Marcela e Verônica ainda estavam dormindo.

- Fico feliz por você. - Por você, não por mim, só pra constar, completei egoísta e mentalmente. - Ele te faz bem.

- Muito. - Ela respondeu suspirante. - Agora levanta que hoje você vai fazer o café.

- Eu?! Por que eu?! Meu dia de café é só sexta-feira! - Me defendi indignada e sem compreender o porquê de alguém querer comer algo feito por mim, logo pela manhã, mais de uma vez na semana.

- Porque sua mãe ligou.

- Como assim minha mãe ligou? O que é que isso tem a ver com eu ter que fazer o café?! - Perguntei, confusa.

- É aniversário da sua irmãzinha esse fim de semana e é feriado e eu propus que fossemos nós duas passar esses dias lá e ela disse que sim. Então nós vamos. - Ela falou tão rapido que eu precisei de alguns segundos para absorver aquilo que ela tava me dizendo.

- Você não fez isso, Alice. Por favor, me diga que você não fez. - Implorei levando as mãos ao rosto. Lice deu de ombros e me olhou com aquela cara de "é pro seu bem". - Você não tinha esse direito.

- Claro que eu tinha, Rebeca. Você é minha melhor amiga, minha família. Eu sei o quanto você sente falta dela, e acho que ela sente isso tanto quanto você.

- ALICE, pelo amor de Deus, aquela mulher me expulsou de casa, ela me abandonou, ela não me queria por perto, ela se recusou a atender meus telefonemas desde o começo do ano, ela só não me quer na vida dela... Eu não vou cruzar o Estado por isso.

- Rebeca, ela ligou, ela quer, é sua mãe! - Ela tentou.

- Acho que ela desistiu dessa parte aí da nossa relação de uns tempos pra cá. Talvez eu queira desistir também.

- É. Você faz o que você quiser, Beca. - Alice disse, desligando o sorriso da tomada de uma vez, levantando da beirada da minha cama em direção à porta do quarto. - Pelo menos você ainda pode ter sua mãe de volta. - Saiu, deixando pra eu varrer os restos da minha cara quebrada lá no chão. E ainda gritou lá da sala - Tanto faz. O café-da-manhã hoje ainda é seu!

Quarta feira de porcaria. Pensei comigo mesma à caminho da porcaria da cozinha, pra fazer a porcaria do café.

- Bom dia pra vocês também! - Falou Marcela, adentrando a cozinha em busca de certas explicações e observando eu, Alice e nossas caras de enterro. - Por que a Beca tá cozinhando? Era minha vez... Vocês duas brigaram foi?

- Você fica com o café da sexta-feira. - Alice disse, varrendo o lugar atrás do sofá que eu nunca varria quando era minha vez. Marcela deu de ombros concordando sem entender porra nenhuma, eu resolvi completar o raciocínio:

- Nós duas vamos na minha casa esse fim de semana. - Alice deu um sorriso discreto na minha direção.

- Você lembra que sua mãe ainda mora lá, não lembra?

- Marcela! - Alice a censurou. Eu continuei calada, prendendo o choro enquanto mexia os ovos, e assim permaneci até depois de tomar banho, me vestir e finalmente sair do apartamento. Sem uma palavra sequer.

domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre

Éramos nós dois numa sala vazia e mal iluminada pelo que ainda restava de luz na tv sem som. A boca dele na minha boca, a mão dele segurando minha nuca e minhas unhas passeando docemente pelo seu pescoço.

Bruno era um rapaz de ávidos talentos, mas nenhum deles conseguia se comparar com o modo como ele conseguia deixar aquele sofá minúsculo só pelo jeito como passava a mão pelas minhas costas, segurando minha cintura. Era respeitoso, até certo ponto - por influêcia minha, confesso. Eu mordia a orelha dele, enquanto ele beijava meu pescoço e tentava distrair minha atenção da mão que ia passando da minha cintura, subindo marotamente como se eu não fosse perceber. "Provocar" era a palavra certa. Coloquei meu braço recostado no sofá, impedindo delicadamente que sua mão continuasse a subir, o que não durou lá muito tempo até eu ceder àquelas mãozinhas mágicas, enrosquei minha perna na dele e quando dei por mim, valha-me Deus... Num lapso de consciência moral, tomei de volta pra mim meu cérebro e me afastei um segundo.

- O que foi? - Bruno perguntou ofegante com uma cara confusa. Eu me sentei novamente tentando sem muito sucesso desamassar minha roupa, até porque coleguinha, você bem deve imaginar como já não estávamos. Eu dei de ombros, fazendo que não com a cabeça.

- Não, nada... É só que... Vamos um pouco mais devagar. Tudo bem? - Eu vi ele sorrir de lado, antes de se aproximar do meu rosto e dar um beijo no canto da minha boca com cara de "não se preocupe com isso". E passamos mais um bom tempo calados, Bruno deitou a cabeça no meu colo só que virado pra mim, pra que eu pudesse ficar assanhando o cabelo dele quieta enquanto ele mordia minha barriga, mas um determinado momento ele resolveu ficar quieto.

- Beca. - Ele me chamou, distraído com alguma coisa no teto.

- Oi. - Respondi sem prever a pergunta que estava para ser feita a seguir:

- Beca, você é virgem? - De repente eu me engasquei com o nada. Senti minha cara ficando mais vermelha que... Que... Sei lá, pense em uma coisa muito vermelha. Pronto, isso aí.

- Que espécie de pergunta é essa, Bruno?! - Perguntei nervosa, ainda tossindo engasgada e rindo. Ele se sentou no sofá e deu de ombros, sem sorrir dessa vez.

- Só uma pergunta, ora.

- Uma pergunta muito indiscreta, só pra constar. - Eu disse, levantando do sofá, coçando minha cabeça nervosa e um tanto envergonhada. Passos, risadas exageradas e chaves tilintando ao girar na fechadura, graças ao meu bom e adorável Deus. Ou não.

- Uh la lá.. - Falou Marcela com todo o sotaque francês que ela não tinha, ao entrar no apartamento e ver Bruno no sofá com uma almofada muito oportunamente localizada entre suas formidáveis pernas. - Parece que atrapalhamos alguma coisa, Verônica...

- Bom, er, tchau. - Bruno disse, correndo pra porta, deixando a almofada sobre o sofá e saindo depois de voltar pra mim e dar-me um beijo na bochecha.

- Ai Marcela, quanta indiscrição! - Verônica disse, depois de um rápido beijo em Breno que, sem zoar comigo (ainda bem), seguiu seu caminho rumo ao apartamento ao lado atrás do irmão. - Os dois só estavam se aproveitando de uma instigante noite de sábado no sofá da sala. Afinal, qual de nós nunca se aproveitou desses raros momentos de vazio nisso aqui não é? - E fechou a porta, eu revirei os olhos.

- Beca, Beca, Beca. Você nos mata de orgulho! - Marcela disse, pulando em cima de mim, subindo nos meus ombros, meio bêbada.

- E vocês me matam de vergonha. - Falei, jogando-a no sofá, rindo.

- Cadê a Lice? Ainda não chegou? - Verônica perguntou, a caminho da lavanderia ao lado da cozinha pra pegar sua toalha pink berrante.

- Ainda não chegou. - Eu disse, sentando no sofá, deixando Marcela vir deitar a cabeça cheia de cachaça no meu colo.

- Quem diria que este dia iria chegar! - Manifestou-se Verônica, indo pro banheiro com um certo desequilíbrio ébrio que fez o corredor parecer mais cheio de curvas que o normal. - Nós três em casa antes da Alice! É quase que um milagre minha gente, esse Pimenta... Orégano...

- Sal. - Corrigimos Marcela e eu.

- Seja lá qual for o tempero que ele tem no nome, ele merecia ser canonizado por conseguir arrancar a Alice dessa casa até uma hora dessa num sábado à noite. Porque né?! - Ela entrou cambaleando no banheiro, fechou a porta, ligou (sabe lá Deus com que coordenação motora) o mp3 do celular e o chuveiro.

- Bora bicha, contando, 1 2 3, cada posição louca e perversão sexual... - A bocó da Marcela começou, eu comecei a rir. - Agora pronto, nada de rir não minha filha, eu quero detalhes!

- Detalhe de quê, criatura?! Não aconteceu nada... Nem vai acontecer, por enquanto. Eu acho.

- Ave. - Ela falou forçado um ar bravo mas se acabando de rir. Levantou toda tonta do sofá, bagunçando meu cabelo. Deu dois passos e recuperou o equilibrio e por um segundo oportuno, sua sanidade. - Mas é assim mesmo... Não se sinta obrigada a nada não. Faça o que quer que seja, mas só quando você quiser, viu? Bruno é um bom menino, e é claro que você já sabe disso, e credo, porra é essa que eu tô parecendo minha mãe tendo "aquela conversa" comigo?! - Nós duas rimos. - Acho que a vódega afetou meu cérebro mais do que eu previ... Vou ali dormir. E a gente continua essa conversa amanhã, mocinha.

Marcela conseguia ser elegante até mesmo bêbada, seu porte de bailarina lhe caía bem com a cintura afilada no vestidinho rosa que eu tinha desenhado pra ela, segurando os saltos nas mãos e o cabelo amarrado no alto de um rabo-de-cavalo. Ela parou um segundo e deu meia-volta olhando pra mim.

- Mas e o Sal?

- Ele é dela. - Eu disse, dando de ombros. - Estou tentando não pensar muito mais que isso.

- Bruno sabe? - Marcela perguntou, eu fiz que sim com a cabeça. Ela, apoiando seu ombro à parede, fez uma cara que dava pra ver no rosto dela que seu coração estava apertado de um modo sobrenaturalmente empático ao meu. - Você vai ficar bem?

- Vou tentando. Não tem como saber se eu consigo ou não, mas é como dizem...

- Qual a graça de viver sem correr riscos, não é mesmo? - Marcela completou a frase sorrindo comigo. Levantei a sobrancelha, nós duas baixamos a cabeça e fomos para nossos respectivos quartos.

Conversar com Marcela, proteger Alice e estar com Bruno me lembraram coisas que eu nunca consigo lembrar de ter tido. Eles se importavam comigo e era recíproco. De repente senti uma saudade imensa, ela já não me atendia há mais de um mês, mesmo assim disquei o número. Mas era quase uma da manhã, minha mãe podia esperar, amanhã eu ligo. Juro que ligo.

segunda-feira

Capítulo 7 - No Love, No Glory (Parte 3)

Os termos "sábado à noite" e "Rebeca sozinha em casa" não cabiam na mesma frase, era um costume, uma regra, uma quase que obrigação. Marcela e João iam ao cinema, Verônica e Breno também, Sal e Alice haviam saido para jantar alguma coisa em algum lugar cujo qual eu não tive o menor interesse em saber qual era, e Bruno, bom... Se ateve a me evitar o dia inteiro. Então lá estava eu, acolhida pelo meu querido sofá, sozinha em casa, com uma colher gigante, um pote de sorvete de cajá, luzes todas apagadas, moleton roxo, meias desiguais e vendo o dvd de "Ghost - Do outro lado da vida" pela trilhonésima vez, chorando feito a vaca sentimental que realmente sou, num sábado à noite. Que beleza.

Passos no corredor precederam os três toques dados na porta do apartamento. Respirei fundo enxugando meu rosto na manga do moleton, deixei o pote de sorvete de lado e me arrastei até a porta para abrir.

- Oi. - Bruno disse simpático, sorrindo sem graça deixando um pouco do aparelho à mostra. - Posso entrar?

- Quando foi que deixou de poder? - Falei, dando de ombros e retribuindo o sorriso. Ele foi entrando e sentou no sofá que eu estava antes. - Pelo menos assim tenho compania para a minha noite solitária.

- Não é muito comum te ver em casa e sozinha uma hora dessas. - Observou Bruno, notando o silencio incomumente predominante no apartamento. Sentei quieta, voltando a por o sorvete no colo e dando "play" no controle do dvd. - Romance melodramático outra vez? Quantas vezes você já viu esse filme?

- Parei de contar na vigésima sétima. E ainda choro toda vez que o Patrick Swayze morre. - Nós dois rimos, quietos, tentando voltar a atenção para o filme, sem sucesso obviamente. Eu baixei a cabeça.

- O que foi? - Ele perguntou com aquela voz de preocupação meiga.

- Nada... Só me desculpe por ontem, tudo bem? Por ter me importado tanto com aquela piada boba. Eu não queria brigar com você... É que as vezes eu não sei como. Eu perco o controle. Paro dessa coisa de pensar coerentemente e acabo falando só um monte de frase sem nexo que vem na minha cabeça, deixando tudo o que eu falo quase rude e sem sentido.

- Tipo agora. - Bruno afirmou sorrindo. Eu sorri, dando de ombros ainda sem olhar pra ele.

- É, tipo agora. Você vai me desculpar? - Perguntei, estirando o dedo mindinho como a gente costumava fazer as pazes quando criança. Ele segurou meu dedinho com o dele.

- Pode ser. - Respondeu e depois assanhou meu cabelo com outra mão, como sempre fazia. - Posso ficar e assistir com você?

Sem responder, botei o pote de sorvete sobre a mesinha e uma das almofadas no colo dele, ainda sem soltar meu dedinho do dele, então me deitei com a cabeça na almofada que tava com Bruno e assim assistimos o resto do filme.

-

Os créditos finais estavam quase acabando, mas mesmo assim não nos movemos do sofá, nem ligamos luz alguma. Ela não soltou minha mão, eu não soltei o dedinho dela, e assim permanecemos em silêncio por só Deus sabe quanto tempo.

- Bruno.

- Oi. - Respondi atento, passando a mão pelo cabelo dela.

- Era você mesmo quem fazia aqueles corações ao redor dos nomes? - Beca perguntou quase sussurrando.

- Era. - O reflexo da luz que vinha do lado de fora me deixava ver o rosto dela sorrindo envergonhada e com o pensamento longe e tão perto dalí. - Por que?

- Não... Por nada. Eu só queria saber. - Continuamos mais um tempo em silêncio. Algum relógio avulso esquecido em cima da mesinha de centro por sorte no caminho que a luz da rua entrava pela janela acabava de marcar onze em ponto, quando ela resolveu levantar do meu colo e voltar ao seu lugar inicial sentada no sofá.

- Beca.

- Oi. - Ela respondeu, jogando o cabelo pro lado e trazendo seu olhar pra mim com uma das sobrancelhas arqueada como fazia quando estava curiosa.

- Eu levaria alguma esculhambação ou tabefe se eu fosse aí e beijasse você agora? - Perguntei cara-de-pau, ela sorriu e falou baixinho:

- Qual a graça de agir sem correr riscos? - Eu sorri, me aproximando. Ainda sem soltar minha mão da mão dela, segurei sua nuca por baixo do longo cabelo castanho com cachos apaixonantes que tinham as pontas, e trouxe a boca dela pra minha.

quarta-feira

Capítulo 7 - No Love, No Glory (Parte 2)

Simplesmente levantei, com uma vontade infeliz de gritar com Bruno, me sentindo traída. Não me lembrava de ter feito nada para que ele deduzisse aquilo sobre aquela noite, e pior, comentar esse absurdo com Breno. Pra não sair bruscamente, falei que ele devia ter entendido errado. Andei até a porta e saí andando.

Não demorou nem um minuto e eu ouvi os passos apressados vindo atrás de mim.

- Beca!... - Lá vinha ele, correndo ofegante. Eu continuei andando, sem olhar pra trás. Ele apressou ainda mais o passo - Rebeca...

Os dedos de Bruno tocaram meu ombro, gelados como o resto da mão dele que segurou meu ombro e me virou de frente pra ele. Minha vontade era gritar até explodir o timpano dele, ou então meter-lhe a mãozada na fuça, mas eu não tinha coragem de fazer isso - quer dizer, eu tinha, mas não com Bruno. Eu apenas disse:

- Não estou em condições de falar com você, não agora.

Fui andando até o primeiro degrau da escadaria e lá me sentei, apoiando os cotovelos nos joelhos e segurando a cabeça com as mãos. Ele ficou parado, ainda olhando pra mim daquele jeito, ensaiando mentalmente a resposta de uma pergunta que eu não fiz. Verônica saíra rebocando Breno do nosso apartamento pro dele, conseguindo a proeza de deixar o ambiente ainda mais tenso. A outra porta se fechou, Bruno tomou fôlego e começou:

- Eu disse nada daquilo!

- É, seu irmão deduziu aquilo sozinho. - Levantei a sobrancelha e sorri irônica.

- Olhando assim parece que você não me conhece, Rebeca! Breno é um grande idiota que faz piadinha com qualquer coisa. Você sabe como ele é...

- Ele é idiota, não burro, Bruno. Ele não ia tirar uma coisa dessas DO NADA... Porra, que vergonha.

- Mas você não tá querendo dizer que eu que falei aquilo pra ele não, né?

- Não, não. Fui eu! - Falei levantando o dedo, sarcasticamente e me calei por um instante. - Você viu o jeito como Verônica e Alice me olharam?.. Como Sal me olhou?... - Balancei a cabeça negativamente.

Eu esperei ele esperniar por eu estar sendo incompreensiva com ele, pensei que ele iria negar outra vez, se defendendo e pedindo perdão, falando mais desculpas esfarrapadas e coisa e tal, e tal e coisa. Então quebrando toda a minha linha de raciocício sobre o rumo que essa briga viria a tomar, Bruno simplesmente dá de ombros na minha frente e sai andando. COMO ASSIM SAI ANDANDO? Regra número um: Numa briga, nunca deixe uma mulher falando sozinha, mesmo que ela não esteja falando nada. Aliás, numa briga, conversa ou qualquer outra porcaria de ocasião. É irritante, indignante, loucamente deselegante e o único desejo absoluto que se apossa da gente é o de gritar e esbofetear sua cara até que você volte sua atenção para o ponto inicial novamente.

- EI! - Eu levantei do batente e gritei. Bruno parou, olhou pra trás - Pra onde você vai?!

- E por que isso te interessaria? Se você quer ficar aí sentada sozinha amargando a imensa e irreparável vergonha que (supostamente) eu fiz você passar pelo que o meu irmão bêbado falou na frente das suas amigas (que fazem brincadeiras bem mais pesadas que essa) e do cantorzinho meia boca que ninguem nem conhece direito e mesmo assim você ainda olha pra ele como se fosse, sei lá, o ultimo prato de brigadeiro na face da terra e parece sempre estar pronta pra atacar à qualquer minuto, mas só não faz porque a Alice meteu a colherada primeiro, e está indignada com o que ele pode remotamente pensar sobre a sua indole. - Ele cuspia as palavras uma por uma, agressivo e magoado como eu só havia visto umas poucas vezes na vida. E eu, o olhava absorvendo todo aquele discurso revoltado, surpresa e com o coração na mão. - Se é assim que você quer ficar mesmo, por que se interessar com o "pra onde eu vou"?

- Claro que não tem nada disso, você tá imaginando coisa!

- Eu posso ser meio lento às vezes, Beca. Só que eu nunca tive vocação pra tapado. Ou você pensou que eu não ia perceber que ele era o cantor do barzinho que a gente foi naquele dia e você ficou completamente vidrada nele o tempo inteiro que ele estava no seu seletivo campo de visão? Ou que eu não ia reparar no seu olhar quando ele chegou agora à noite e abraçou a Alice?

- E-Eu não sei do q-que você tá falando. Isso não tem o menor fundamento, Bruno. - Gaguejei. Ele sorriu sem humor.

- Óbvio que você sabe. É lógico que você vê. Porque eu só posso ver o que tem dentro daí, de você, nos seus olhos. E ver que eu não passo de um biscoito Passatempo pra forrar seu estômago enquanto a sobremesa completa não vem... É tão evidente quanto a lembrança que eu tenho de como a gente era antes. Riscando a calçada da sua casa com corretivo, enquanto você desenhava aqueles elefantinhos e unicórnios, eu escrevia meu nome junto do seu, você olhava, e ria como quem conta uma mentira boba pra disfarçar a vergonha, porque no outro dia sempre aparecia um coração em volta dos nomes e lembro de você batendo no Breno porque a culpa era sempre dele, e você ficava tão brava que eu ficava com medo de desmentir tudo e dizer que depois que você entrava em casa pra jantar, era eu quem ia lá e botava o coração em volta.

- Eu não sei o que dizer. - Falei, voltando a me sentar, assimilando tudo aquilo. Pedaço por pedaço do discurso de Bruno.

- Aí é que tá. - Ele respondeu, como se eu tivesse descoberto toda a fonte do problema. - Você NUNCA sabe!

- O que você tá querendo dizer com isso?!

- Nada, Beca. Nada! - Ele disse voltando à sua posição inicial, de pé, braços cruzados, na minha frente, fingindo estar olhando pro nada.

- Só porque eu falo essas coisas, não quer dizer que eu não sinta. Eu não sou do tipo que sai por aí gritando todos os meus sentimentos à plenos pulmões, nem que gosta de anunciar (ou ver sendo anunciado) como, quando ou porque vou parar na cama de alguém! - Descarreguei, olhando pra ele, agoniada, com vontade de gritar, tentando deixar que as lágrimas entulhando minha vista não desabassem. - Me desculpe por não ter sempre uma coisa bonitinha pra te falar, ou quase sempre desviar dos assuntos que me deixam vulnerável. Desculpe se eu sou insensível, ou.. sei lá. Nada disso quer dizer que eu não sinta nada, mas eu acabo sentindo tanto ao mesmo tempo que não consigo nem entender, quanto mais falar...

- E sobre o cara da Alice? - Ele finalmente olhou pra mim, perguntando.

- Talvez eu não queira falar sobre isso. - Respondi grossa.

A porta do apartamento se abriu, os dois sairam lá de dentro, de mãos dadas. Mais e mais lágrimas se amontoavam à cada passo deles, e eu olhando pra cima sem deixá-las cair. Um casal apaixonado, composto pela minha melhor amiga e o cara que eu queria, lindo isso. Era uma daquelas horas que você tem que ser forte por mais fraca que esteja. De construir um castelo ao redor de mim, mesmo que fosse de cartas.

- Tchau pessoal. - Sal falou. Tentei forçar um sorriso e acenei com a mão, a veia no canto da testa de Bruno pareceu que ia explodir. Mesmo assim foi cordialmente até Sal apertou sua mão e disse qualquer coisa que eu não prestei atenção. Porque com a outra mão, Sal ainda segurava a mão de Alice e isso infelizmente dominava toda a minha atenção. E continuei a tentar parecer imparcial.

Os dois desceram a escadaria, falaram algo que não deu pra ouvir, então do nada, Sal passou a mão pela cintura dela, e simplesmente a beijou. Sem conseguir segurar, algumas das lágrimas silenciosas despencaram puxando com elas todas as outras. Bruno olhou pra mim, depois pra eles, e sussurrou pro meu lado:

- Tem certeza que não quer mesmo falar sobre isso, Rebeca?

E eu, por minha vez, respondi dando um sorriso sem humor enxugando o rosto.

- Eu estou fingindo estar bem, por favor não interrompa minha performance.

- Você merece mais que isso. - Bruno disse, depois me olhou com cara de pena, beijou minha testa e saiu balançando a cabeça ceticamente pro seu apartamento com as mãos nos bolsos. E eu continuei lá.

segunda-feira

Capítulo 7 - No Love, No Glory.

Marcela e João foram os primeiros a sair da sala, indo pro quarto que ela dividia com Verônica, já meio cambaleante, puxando o rapaz pela mão. A própria Verônica e Breno estavam muito bem se agarrando mesmo no sofá sem pouco se importar com o simples detalhe de que haviam mais algumas pessoas por lá. A agarração deles já tava num estágio que me deixava constrangida por Sal estar alí, presenciando toda a ardente situação na qual os dois se encontravam, também constrangido, como Beca e Bruno que ainda continuavam lá.

- Ô, vocês. - Beca disse, pigarreou sem sucesso, então resolveu apelar pro - EI! - Eles olharam um tanto sem fôlego, ela peguntou - Por que é que vocês não vão prum quarto, hein?

- Porque a Marcela já tomou posse do quarto. A não ser que uma de vocês duas disponibilize uma das lindas caminhas pra gente no outro! - Verônica respondeu na lata. Bruno, Breno e Sal riram, eu e Beca nos entreolhamos, ambas fazendo careta de nojo, automaticamente falamos "Claro que não!" ao mesmo tempo. - Então...

- E o quarto do Breno? Não fica a menos de dez metros, o apartamento é aqui vizinho, gente... - Eu sugeri. Beca concordou comigo, e por um milésimo de segundo, vi uma veia saltar na testa de Bruno assim que Breno sorriu safado, já meio alegrinho por causa do vinho em excesso, com sua resposta na ponta da lingua.

- É que eu divido o quarto com o meu irmãozinho... - Ele começou, Beca o interrompeu, sorrindo.

- Sim mas o que é que tem a ver? - Eu podia notar gotinhas de suor se formando na testa de Bruno, nervoso com a desculpa que o gêmeo iria dar, imaginei.

- O que tem a ver, é que, pelo que eu entendi, você e ele que iriam pra lá esta noite, Beca. - Pesou o clima. Dito e feito, Bruno engoliu no seco quando Beca trancou a cara, levantando sua sobrancelha matadora e dando como resposta à teoria de Breno um quieto, porém sonoro:

- Não. Acho que você entendeu errado, Breno. - Levantou do chão onde estava sentada, olhou para Bruno incrédula. - Com licença. - Ele saiu da frente e Beca saiu dalí calmamente em direção à porta, saindo dalí. Bruno deu um tabefe na cabeça do irmão e saiu correndo atrás dela.

- Tenso. - Sal falou, pondo o braço por trás de mim, deixando sua mão recostar no meu ombro.

- Porra Breno... - Veronica o censurou. Ele olhou pra ela e depois pra mim.

- Que foi que eu fiz? Me explica!

- Acho que não precisava ter dito isso, cara. - Sal falou.

- Acho que você tomou vinho demais e já começou a falar bosta, anda. - Verônica foi se levantando do sofá e puxando Breno, arrastando-o pra saida, resmungando. - Vamos lá pro outro apartamento. O que você tá precisando é tomar café forte e um banho bem gelado, de preferência os dois ao mesmo tempo pra ver se morre de uma trombose e para de falar merda... - Ela se voltou pra nós dois: - Tchau, gente. Boa noite, até amanhã. Adorei te conhecer viu, Sal. Apareça mais vezes. - Verônica sorriu, apontando pra mim. - Cuidado com ela, essa menina é um doce.

Senti meu rosto ficando em algum tom de vermelho, pelo sangue se espalhava por todo ele. O moreno abriu um sorriso sincero, olhou pra mim, depois pra ela outra vez.

- Quanto a isso não precisa se preocupar. Acho que ela está em boas mãos. - Verônica assentiu, Breno deu um tchauzinho serelepe e fecharam a porta, deixando eu e Sal sozinhos na sala.

- Isso vai dar confusão. - Eu disse, preocupada com o que Breno havia dito sobre Beca e Bruno.

- Imagino... - Sal falou. - Seus amigos são muito legais. Acho que eu nunca tive isso...

- Agora você não precisa mais ser tão sozinho. - Eu disse, levantando pra pegar as garrafinhas de Ice pelo chão, e sorri.

- Talvez seja melhor dizer que eu não possa... - Sal me corrigiu com a voz rouca que tanto me encantava tão baixo que mal deu pra ouvir, levantando do sofá, pegando os pratos usados que estavam sobre a mesa e levando-os para a pia por trás do balcão. Eu sorri e olhei pra ele.

- Eu tenho medo de acreditar que todas essas coisas que você me fala sejam realmente verdade e eu acabar quebrando a cara depois, sabe...

- Eu não seria idiota o bastante pra falar tudo isso pra você e estar mentindo, qual seria o propósito? Com que cara eu ia olhar pra você depois? Eu não sou esse tipo de cara, minha linda.

- É que eu meio que andei ouvindo umas histórias sobre seus relacionamentos anteriores e... - Ele me interrompeu.

- Eu nunca fui um homem de "relacionamentos anteriores".

- Quer dizer que você simplesmente fica com todas ao mesmo tempo, é isso? As que ligam pro seu celular sempre que a gente tá junto perguntando quando e onde vocês podem se encontrar outra vez, porque a ultima vez havia sido maravilhosa e bla bla bla... Como é isso, Sal?

Sal revirou os olhos, soltando a última leva de pratos à pia.

- Elas não são importantes, elas não são você.

- E por que causa, motivo razão ou circunstância eu tenho que acreditar que não vou acabar como uma delas depois que ficar com você?

- Porque você tem a autoconfiança de uma criança de seis anos num primeiro dia de aula mesmo tendo cacife pra concorrer ao miss universo. Você é interessante, e sabe conversar, e quando eu chego perto de você tem alguma coisa dentro de mim que dispara um alarme qualquer e me faz parar de prestar atenção em qualquer outra que não seja você, e me assusta não saber controlar isso.

Eu baixei a vista, sorrindo burra com a declaração, sem conseguir sustentar o olhar dele, de pé na minha frente.

- Então eu assusto você? - Foi o que eu consegui dizer.

- Nada abaixo disso é suficiente pra descrever você pra mim. Não é algo com o qual eu consiga lutar. Nem que eu queira me opor.

- Vou torcer pra que isso seja verdade. Porque se não for...

Ficamos em silêncio por alguns segundos, e certos barulhos vindos do quarto de Marcela nos deixou, digamos, envergonhados.

- Acho que é melhor eu ir, está meio tarde. - Eu sorri. - Me deixa até lá embaixo?

- É claro.

Saímos de mãos dadas pela porta branca do apartamento, deixando na sala, sozinhos, os gemidos desconfortantes, para que tivessem alguma privacidade.

Rebeca e Bruno discutiam muito efusivamente, ela sentada no alto da escadaria, de cara amarrada, braços cruzados e ele de pé, em frente a ela. Pararam a discussão subitamente quando perceberam eu e Sal nos aproximando.

- Tchau, pessoal. - Sal falou, educado, quando passávamos por ele. Beca tentou forçar um sorriso animado dando tchauzinho com a mão de onde estava, sem falar nada. Bruno foi até Sal e apertou sua mão:

- Tchau, cara. - Pareceu tão simpatico e convincente quanto um ator de novela mexicana, e falou o que me pareceu ser sinceramente - Apareça mais vezes.

A expressão no rosto de Beca era fria e longe. Olhando pro nada o tempo que Bruno passou falando com Sal. Até que nós dois descemos o resto da escadaria:

- Obrigada por vir. - Eu disse, segurando sua mão. Ele sorriu.

- Não. Obrigada por querer que eu viesse.

- Não tem porque agradecer, eu sempre quero você por perto.

- O quão perto você me quer?

- Tô começando a achar que o tempo inteiro. - Respondi, sorrindo com ele. Por um segundo que eu perdi, Sal passara o braço ao redor da minha cintura. E no segundo seguinte, me roubara um beijo.

O chão sob meus pés desapareceu. Meu coração parecia ter trocado de lugar com meu estômago, acelerado, disparando borboletas por todos os outros órgãos do meu corpo. Ao contrário de seu nome, o beijo de Sal era doce. Um gosto que eu nunca havia sentido antes. Uma ameaça protetora, que precisava de uma fortaleza indefesa pra se compor totalmente. Cálido e simples... Era como se a minha boca e a dele tivessem um encaixe perfeito, uma na outra como devia estar previsto em algum lugar, elas deveriam se encontrar. Suas mãos segurando minha cintura, me abraçando, me segurando para que meus joelhos fraquejantes conseguissem se sustentar de pé. A sensação era inenarrável, nem todos os dicionários do mundo, ou frases de calendários, ou pesquisas do google seriam capazes de definir o que eu estava sentindo. Acreditar no amor não era mais tão difícil depois de provar o gosto que tinha.

- Boa noite, minha linda. - Ele sussurrou na minha orelha, segurando meu rosto que não conseguia parar de sorrir olhando pra ele. Beijou minha bochecha. - Tchau.

E saiu me deixando voltar pra dentro do apartamento e ir pro meu quarto com todas as respostas e dúvidas sem pergunta que me surgiram como um vulcão em erupção, mas não precisavam de explicação alguma.