domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 4)

Oito e vinte da noite. Pra variar, atrasado. Tinham umas quinze pessoas no lugar - Uma boate antiga da cidade que tinha sido fechado há muitos anos. Tinham deixado alguns panfletos no quadro de avisos da universidade, iam reabrir precisavam de funcionários novos.

O violão nas costas costumava me dar uma eterna primeira impressão de vagabundo, só que como eu já estava atrasado mesmo, um ponto negativo a mais, um a menos não ia fazer lá muita diferença - Eu precisava do emprego, eu tinha resolvido ser o cara certo pra ela, caras certos têm empregos.

Fui entrando na sala de espera apertada, e dei meu nome para uma mulher nada simpática que com certeza se perguntou que tipo de pessoa teria um condimento como sobrenome, mas ficou calada por educação.

- Eduardo Sal... Pra qual vaga? - Ela perguntou, pondo o cabelo vermelho encardido pra trás da orelha, apoiando a prancheta na cintura, estranha. - GoGo Boy?

- Não, não. Só garçom, por favor. - Falei educado, com um sorriso. Era o que tinha maior probabilidade de me contratarem, duas vagas de barman, quatro garçons e cinco garçonetes para a área vip, o resto eu nem li. Ela me deu um número e pediu que eu esperasse sentado em algum canto por alí, então eu fui.

Havia uma cadeira vazia ao lado de uma moça de cabeça baixa, entretida com um jogo no celular e batendo a perna nervosa pra passar o tempo mais rápido. Sentei lá pondo o violão de lado, ela continuou de cabeça baixa, escondendo o rosto com o cabelo e começou a me parecer extremamente familiar.

- Rebeca Albuquerque. - Chamou a mulher de cabelo encardido. - Pode ir! - A moça do meu lado (que agora eu sabia o porquê me parecia tão familiar) levantou da cadeira e foi até a sala com a porta de vidro azul. Ainda nervosa, andando um pouco mais rápido que o necessário.

- Boa sorte. - Eu disse baixinho, mas acho que ela não ouviu. Amarrou o cabelo num rabo de cavalo, adiantou um sorriso simpático diante da porta fechada, girou a maçaneta rápido e entrou.

Era amiga da Alice, a mais bonita das amigas dela - pra falar a verdade. A que não gostava de mim e eu não tinha a menor ideia do porquê. Desejei que ela arrumasse o emprego e que eu também, assim ficaria mais fácil tirar a má impressão que ela teve de mim e poderia fazer uma amiga sem más intenções - pela primeira vez em muito tempo.

~

Oito e vinte da noite. Eu já estou sentada nesta bosta de cadeira há mais de meia hora, esperando aquela vaca do cabelo encardido chamar meu nome pra fazer logo essa porra de entrevista pra eu poder ir embora dormir. Minha cabeça explodia tanto de dor de cabeça que eu me obriguei a desfazer o rabo de cavalo pra ver se a dor tinha dois dedos de boa vontade de aliviar.

O cara parrudo com cara de quem toma bomba sentado do meu lado mascava audivelmente um chiclete de melancia - GoGo Boy, aposto. A vaca batia na prancheta com uma caneta de gliter azul no mesmo ritmo que eu batia meu pé inquieto no chão, irritada. Alguém abriu a porta e entrou no lugar, eu fiz questão de nem olhar, devia ser outro Gogo Boy metido a gostoso. Continuei concentrando meu intelecto glorioso na cobrinha recordista do meu celular, e assim permaneci até que:

- Nome? - Perguntou a vaca com a voz mais pastosa do que sua cara, porém com um ar de excitação que me deixou curiosa para olhar.

- Eduardo Sal. - Ele respondeu rouco, num sorriso. Fudeu, fudeu, fudeu.

Eu levantei a cabeça para conferir. Moreno, cabelo curto, violão nas costas, braços musculosos, ombros desgraçadamente perfeitos e o meu coração disparado por baixo da blusa justa de flanela. Fudeu, era ele mesmo. A vaca encardida deu uma ficha pra ele e eu tratei de fingir que não estava alí.

Sal veio andando e sentou do meu lado sem me reconhecer, os anjinhos do bem e do mal na minha consciencia iniciaram uma guerra mediúnica no meu cérebro pra decidir se ele não ter notado a minha presença era uma coisa boba e ele só não tinha olhado direito ou eu era uma ridícula de achar que ele não tinha nada melhor pra fazer que ficar olhando pra ver se me reconhecia. Lógico que o anjinho do mal venceu e a dor na minha cabeça pulsou outra vez.

Alguém abriu a porta, e disse algo pra vaca encardida que chamou mais alto que o necessário:

- Rebeca Albuquerque. Pode entrar! - Respirei fundo e levantei rápido, e andei rápido também, na verdade o máximo que pude. Mas quase tropecei, bem no pé da porta de vidro azul, quando vi o reflexo dele no vidro e ouvi sua voz rouca sussurrando:

- Boa sorte. - Eu não olhei pra trás. Apenas parei bruscamente, amarrei meu cabelo no rabo de cavalo de novo, sorri sozinha do murro que o anjinho do bem deu mentalmente no anjinho do mal, girei a maçaneta rápido e entrei.

Aquele escritório tinha cheiro de carro novo, não me pergunte o por quê, mas tinha. Paredes em azul (no mesmo tom que o vidro da porta), grafitadas com letras de música de cima a baixo, um sofá de couro preto, e um cara muito charmoso, lá pelos 25 ou 30, com uma camisa do Ramones e a barba por fazer, sentado simpático atrás da mesa chique de vidro.

- Boa noite, senhorita... Rebeca, certo? - Confirmei, ainda sorrindo. - Sente-se, por favor. - Ele disse, apontando para a poltrona preta debaixo da luminária torta que descia do teto.

Eu sentei e ele ficou lá observando o currículo que eu havia mandado uns dois dias atrás, depois alternando entre os papéis que folheava e a minha aparência. Depois só minha aparência, a ponto de eu querer me afogar no ganges mentalmente por não ter passado mais maquiagem.

- "Inglês parcialmente fluente"... - O cara leu, depois olhou para mim com um ar desconfiado. - Você não mencionou nenhum curso aqui.

- Nunca fiz curso algum. - Respondi. Ele sorriu, levantando da cadeira visualmente confortabilíssima, andou até bem perto de onde eu estava, e sentou-se na mesa de vidro, me olhando de um jeito desafiador.

- So... Why just "half" fluent, Rebeca? - O meu provável futuro chefe perguntou, eu ja imaginava.

- I have a little bit of difficulty for complete sentences when I talk, but I can understand what I listen very very well. - Respondi prontamente, ainda com um sorriso.

- Eu tiraria o "parcialmente". Seu inglês me parece perfeito, aliás, seu currículo me parece perfeito, ótimas notas na escola, ótimas recomendações acadêmicas... Bem promissora, exceto por um pequeno detalhe: O que me faria empregar uma simpática moça de 19 anos de idade, universitária federal, no provável auge de sua vida social, sem a menor experiência para um cargo que requer tanta habilidade, num ramo que não é muito comum ver mulheres, para escravizá-la (no melhor dos sentidos, claro) às noites de terça, quinta, sexta e sábado atrás de um balcão? - Perguntou levantando a sobrancelha esperando uma resposta convincente.

- Eu aprendo rápido e tenho força de vontade o suficiente para me candidatar a uma vaga como essa. Além, lógico. do fato de ter contas a pagar como qualquer outra pessoa nessa cidade, além desse ser o melhor dos salários entre as vagas oferecidas, e... Creio que abstrair de algumas saídas a mais ou a menos com os amigos não vai ser lá uma facada tão sangrenta assim, e também nós costumávamos vir aqui antigamente, velhos habitos assim como as boas lembranças tendem a não morrerem nunca, não é mesmo?

- Olha... Você está a meio triz de ser contratada. - Ele avisou, eu continuei sorrindo. - Mas para isso você só precisa passar na última fase deste teste, fase esta que eu acho a mais absurdamente difícil.

- Posso saber qual é? - Perguntei curiosa enquanto ele me dirigia ao mini-bar por trás do suntuoso sofá preto.

- Prove que você pode servir um drinque, levar cantadas ridículas e ser psicóloga ao mesmo tempo. - E sentou num dos banquinhos da bancada, esperando que eu fizesse alguma coisa.

- Eu posso fazer isso - Falei - Se puder me falar qual drinque vai querer?

- Algo forte, por favor. Tive um dia bem cheio fazendo todas essas entrevistas irritantes... Tem idéia do quanto é difícil encontrar pessoas determinadas a trabalhar e lindas como você nesta cidade, com um pai que não te apóia em nada e um namoro mal-resolvido? - Ele perguntou simulando a situação e eu tentando não embebedá-lo assim logo de cara, afinal que lucro há nisso? O negócio era embebedar aos pouquinhos, uma dose por vez.

Conversamos por mais algum tempo, depois de três drinques bebidos pela metade e 10 minutos de psicanálise recíproca, eu fui contratada.

- A propósito, muito prazer Rebeca. - Ele falou estirando a mão. - Renato Roriz, seu novo chefe. Boa sorte com sua mãe e com rapaz da periguete.

- Boa sorte com seu pai, com o namoro e vamos levantar esse lugar outra vez. - Eu respondi apertando a mão dele, sorri, e sai pela porta de vidro azul pensando que o meu dia não tinha sido lá tão ruim assim... Até abrir a porta e ver Sal ainda lá.

A vaca chamou o nome dele logo assim que eu saí, ele levantou, só que no lugar dele ir direto pra porta azul, veio perto de mim e perguntou:

- E aí, conseguiu? - Confirmando com a cabeça eu não consegui deixar de sorrir. - Parabéns!

- Eduardo Saaal! - Repetiu a vaca da voz pastosa, apressando para que ele entrasse na sala.

- Você tem que ir, obrigada pela força e bom... Boa sorte. - Foi o que eu consegui falar sem parecer uma retardada, dei um murrinho amigavel no braço dele.

- De nada... - Ele foi abrindo a porta, eu me virei e comecei a andar para a saída, e então eu ouvi aquela voz rouca falando comigo outra vez. - Beca!

- Oi.

- Pode me esperar? - Ele perguntou.

"Não, diga não Rebeca. Diga que não. DIGA NÃO!" Gritava minha própria consciência, mas eu nunca fui lá muito boa em ouvi-la mesmo e... Porra, olha pra cara dele. Moreno, alto, bonito, sensual e ainda mais maravilhosamente abençoado ainda de ter aquela cara de cachorrinho que caiu da mudança e você tem a obrigação de se sentir tentada a pegar pra criar. O que eu consegui dizer?

- Tá. É. Pode ser. - Sal simplesmente sorriu virou e entrou. E lá volto para aquela mesma cadeira, com o celular nas mãos, no mesmo jogo da cobrinha, me odiando do mesmo modo que estava antes, só que agora eu tinha um emprego.

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 3)

Estava nublado e cheio de vento o caminho enquanto eu ia andando devagarzinho a caminho da escola comunitária. Carregando escondido lá no fundo da alma, que eu segurava com tanto empenho quanto eu segurava a bolsa em meu ombro, o amor que eu não tinha pra mim. Tentando me proteger, e aniquilar qualquer dor que fizesse mal, tentando me deixar parecer segura de mim - do que eu queria fazer, de quem eu queria ter. Tentando fingir que eu estava bem tanto quanto eu não estava. Eu carregava com pesar meu coração em passos tão vagarosos que a chuva fina que tinha começado a me acompanhar no meio do caminho vinha se tornando mais grossa a cada segundo, obrigando a reconstrução da estima por mim mesma a se apressar antes que alguém me visse.

Era um prédio antigo, o da escola comunitária, e o que tinha de antigo tinha de cheio de vida. Era um lugar, provavelmente o único lugar na minha vida inteira, que fazia algum sentido. Até agora.

Bruno vinha descendo a escadaria, com um sorriso safadamente doce na boca, o cabelo bagunçado molhado pela chuva. Lindo. E com uma periguete à tira-colo. Segurando os livros DELA. Mexendo no cabelo, jogando charme pra ELA, que tinha peitos maiores que o meu crânio. Um cabelo loiro nojento que ia até depois da cintura. Passando aquela mão de periguete dela pelo ombro DELE de uma forma safadamente oculta, rindo de um jeito chamativo que somente uma periguete pronta pra dar o bote fazia. E ele dando corda.

Eu olhava tudo do portão da frente, quase entrando a guarita do Seu Zé para me esconder e ter um ângulo melhor de espionar os dois. A chuva parou e eles tambem no meio da porra da escadaria. Ele não parava de sorrir, ela não parava de ter cara de periguete - nem por um segundo sequer. Conversando qualquer coisa idiota sobre algo que havia passado de manhã cedo na tv, imagino. Ela não tirava as mãos dele, que parecia gostar, virando o pescoço pro lado, ao bagunçar o cabelo, como costumava fazer quando se sentia ér.. bem.. Você deve imaginar como.

Eu indignada, mordia meu lábio inferior com tanta voracidade e ciúme que se isso fosse durar mais de cinco minutos, com toda a certeza eu terminaria por arrancar um pedaço. Na ponta dos pés, tentando olhar pela janela na guarita que ficava bem de frente praquela cena patéticamente revoltante. A periguete anônima que eu não conseguia ver o rosto bem o suficiente pra saber quem era deu sua última gargalhada esganiçada - provavelmente por alguma piada ridicula e sem graça que ele tinha me ouvido contar e agora estava usando pra ganhar aquela periguete ridícula. Ela virou o cabelo pro lado e foi chegando tão pertinho dele que eu podia ir lá e sentar a mão naquele nariz perfeito ridículo que com certeza tinha comprado, e sussurrou alguma insinuação pornô envolvendo seus cabelos loiros e os ombros perfeitos de Bruno e todos os atributos que viriam de brinde com ambos os itens dentro de um quarto medonho em algum motel de médio preço num canto recluso na cidade, beijou indecentemente sua bochecha - se é que isso é possível - pegou seus livros ridículos que provavelmente ela nunca leu nem vai ler na vida das mãos dele ainda abestalhado pela qualquer coisa que ela sussurrou na orelha dele sem tirar aquele sorriso safado da cara, e saiu rebolante escada abaixo, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar um prêmio nobel da periguetagem.

Eu pensei em 17 maneiras diferentes de se quebrar a clavícula de uma periguete sebosa. Em 21 modos de arrancar seus olhos verdes e cintilantes com uma mão amarrada nas costas. Em 134 jeitos de arrancar seus peitões e nariz falsos usando pinças, tesouras e grampeadores de escritório. Mas apenas fiz um aceno de cabeça quando ela passou do meu lado dizendo "Bom dia" deixando à mostra seus dentes de branquamento artificial caro enquanto Seu Zé, o porteiro sem dentes da frente, deixava seu queixo cair olhando pra bunda malhada de academia cheia de periguetes como ela, que passava indo embora. E eu acabara de chegar.

- Bom dia. - Bruno falou pra mim assim que a periguete saiu e eu entrei em seu campo de visão.

- É, pode ser. - E continuei subindo a escadaria ignorando a presença dele, andando atrás de mim tentando acompanhar meus passos apressados nos corredores em busca da sala de desenho.

- Tudo bem com você? - Ele perguntou, tentando contato.

- Aham.

- Sua aula é só à tarde? - De novo.

- Aham.

- Aconteceu alguma coisa? - Ele não desiste?!

- An an.

- Tem certeza disso? - Mas será possível?!

- Aham.

- Eu fiz alguma coisa pra você não querer falar comigo?

- An an. - Dei de ombros, negando e obviamente mentindo.

- Certo, entendi. - Finalmente se deu por vencido revirando os olhos. - Tchau. Até.

- Tá. Tchau. - Respondi, ele seguiu caminho por um corredor diferente, me deixando sozinha com todo aquela angústia, ciume e mau humor dentro de mim.

Eu nunca fui de me afetar pelas ações das pessoas ao meu redor, nem andar magoada, com cara de triste por ai - Quem é você, e o que você fez comigo? Eu não sou assim, nem é agora que eu vou começar a ser. Soltei meu cabelo do rabo-de-cavalo, empinei o nariz e sai continuando naquele corredor do segundo andar como se nenhum dos andares do meu castelo estivessem desmoronando, mesmo que fosse exatamente o contrário.

Eu tinha duas aulas de desenho pra dar de manhã, cinco da universidade pra assistir à tarde e uma entrevista de emprego para ir à noite. Alguém pode pelo amor de Deus me desejar sorte? Porque do jeito que a minha tá hoje, eu só amanheço viva a poder de reza.

quarta-feira

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 2)

- Tô namorando. - Primeira frase que eu ouço nesta quarta-feira amanhecendo, Alice. Claro que eu a recebi antes sequer de abrir meus olhos direito, acordar com um tabefe desse no meio da cara assim, sem nem bom dia. - Desde ontem.

Ela contou, com um sorriso sem tamanho no rosto que agora parecia mais radiante, mais feliz, e mais um monte de equivalentes a isso. Eu não podia, nem era capaz de tirar aquele sorriso dela, apesar de (de certa forma) desejar incontrolavelmente o motivo que a deixava tão absolutamente maravilhada.

Resolvi ser a boa amiga que eu não era, tentei sorrir na mesma intensidade, esfreguei os olhos e dei um abraço nela como ha muito não fazia. Eu sentia saudade da minha melhor amiga mesmo ela estando toda santa noite dessa vida na cama vizinha a minha, estava silêncio ainda, Marcela e Verônica ainda estavam dormindo.

- Fico feliz por você. - Por você, não por mim, só pra constar, completei egoísta e mentalmente. - Ele te faz bem.

- Muito. - Ela respondeu suspirante. - Agora levanta que hoje você vai fazer o café.

- Eu?! Por que eu?! Meu dia de café é só sexta-feira! - Me defendi indignada e sem compreender o porquê de alguém querer comer algo feito por mim, logo pela manhã, mais de uma vez na semana.

- Porque sua mãe ligou.

- Como assim minha mãe ligou? O que é que isso tem a ver com eu ter que fazer o café?! - Perguntei, confusa.

- É aniversário da sua irmãzinha esse fim de semana e é feriado e eu propus que fossemos nós duas passar esses dias lá e ela disse que sim. Então nós vamos. - Ela falou tão rapido que eu precisei de alguns segundos para absorver aquilo que ela tava me dizendo.

- Você não fez isso, Alice. Por favor, me diga que você não fez. - Implorei levando as mãos ao rosto. Lice deu de ombros e me olhou com aquela cara de "é pro seu bem". - Você não tinha esse direito.

- Claro que eu tinha, Rebeca. Você é minha melhor amiga, minha família. Eu sei o quanto você sente falta dela, e acho que ela sente isso tanto quanto você.

- ALICE, pelo amor de Deus, aquela mulher me expulsou de casa, ela me abandonou, ela não me queria por perto, ela se recusou a atender meus telefonemas desde o começo do ano, ela só não me quer na vida dela... Eu não vou cruzar o Estado por isso.

- Rebeca, ela ligou, ela quer, é sua mãe! - Ela tentou.

- Acho que ela desistiu dessa parte aí da nossa relação de uns tempos pra cá. Talvez eu queira desistir também.

- É. Você faz o que você quiser, Beca. - Alice disse, desligando o sorriso da tomada de uma vez, levantando da beirada da minha cama em direção à porta do quarto. - Pelo menos você ainda pode ter sua mãe de volta. - Saiu, deixando pra eu varrer os restos da minha cara quebrada lá no chão. E ainda gritou lá da sala - Tanto faz. O café-da-manhã hoje ainda é seu!

Quarta feira de porcaria. Pensei comigo mesma à caminho da porcaria da cozinha, pra fazer a porcaria do café.

- Bom dia pra vocês também! - Falou Marcela, adentrando a cozinha em busca de certas explicações e observando eu, Alice e nossas caras de enterro. - Por que a Beca tá cozinhando? Era minha vez... Vocês duas brigaram foi?

- Você fica com o café da sexta-feira. - Alice disse, varrendo o lugar atrás do sofá que eu nunca varria quando era minha vez. Marcela deu de ombros concordando sem entender porra nenhuma, eu resolvi completar o raciocínio:

- Nós duas vamos na minha casa esse fim de semana. - Alice deu um sorriso discreto na minha direção.

- Você lembra que sua mãe ainda mora lá, não lembra?

- Marcela! - Alice a censurou. Eu continuei calada, prendendo o choro enquanto mexia os ovos, e assim permaneci até depois de tomar banho, me vestir e finalmente sair do apartamento. Sem uma palavra sequer.

domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre

Éramos nós dois numa sala vazia e mal iluminada pelo que ainda restava de luz na tv sem som. A boca dele na minha boca, a mão dele segurando minha nuca e minhas unhas passeando docemente pelo seu pescoço.

Bruno era um rapaz de ávidos talentos, mas nenhum deles conseguia se comparar com o modo como ele conseguia deixar aquele sofá minúsculo só pelo jeito como passava a mão pelas minhas costas, segurando minha cintura. Era respeitoso, até certo ponto - por influêcia minha, confesso. Eu mordia a orelha dele, enquanto ele beijava meu pescoço e tentava distrair minha atenção da mão que ia passando da minha cintura, subindo marotamente como se eu não fosse perceber. "Provocar" era a palavra certa. Coloquei meu braço recostado no sofá, impedindo delicadamente que sua mão continuasse a subir, o que não durou lá muito tempo até eu ceder àquelas mãozinhas mágicas, enrosquei minha perna na dele e quando dei por mim, valha-me Deus... Num lapso de consciência moral, tomei de volta pra mim meu cérebro e me afastei um segundo.

- O que foi? - Bruno perguntou ofegante com uma cara confusa. Eu me sentei novamente tentando sem muito sucesso desamassar minha roupa, até porque coleguinha, você bem deve imaginar como já não estávamos. Eu dei de ombros, fazendo que não com a cabeça.

- Não, nada... É só que... Vamos um pouco mais devagar. Tudo bem? - Eu vi ele sorrir de lado, antes de se aproximar do meu rosto e dar um beijo no canto da minha boca com cara de "não se preocupe com isso". E passamos mais um bom tempo calados, Bruno deitou a cabeça no meu colo só que virado pra mim, pra que eu pudesse ficar assanhando o cabelo dele quieta enquanto ele mordia minha barriga, mas um determinado momento ele resolveu ficar quieto.

- Beca. - Ele me chamou, distraído com alguma coisa no teto.

- Oi. - Respondi sem prever a pergunta que estava para ser feita a seguir:

- Beca, você é virgem? - De repente eu me engasquei com o nada. Senti minha cara ficando mais vermelha que... Que... Sei lá, pense em uma coisa muito vermelha. Pronto, isso aí.

- Que espécie de pergunta é essa, Bruno?! - Perguntei nervosa, ainda tossindo engasgada e rindo. Ele se sentou no sofá e deu de ombros, sem sorrir dessa vez.

- Só uma pergunta, ora.

- Uma pergunta muito indiscreta, só pra constar. - Eu disse, levantando do sofá, coçando minha cabeça nervosa e um tanto envergonhada. Passos, risadas exageradas e chaves tilintando ao girar na fechadura, graças ao meu bom e adorável Deus. Ou não.

- Uh la lá.. - Falou Marcela com todo o sotaque francês que ela não tinha, ao entrar no apartamento e ver Bruno no sofá com uma almofada muito oportunamente localizada entre suas formidáveis pernas. - Parece que atrapalhamos alguma coisa, Verônica...

- Bom, er, tchau. - Bruno disse, correndo pra porta, deixando a almofada sobre o sofá e saindo depois de voltar pra mim e dar-me um beijo na bochecha.

- Ai Marcela, quanta indiscrição! - Verônica disse, depois de um rápido beijo em Breno que, sem zoar comigo (ainda bem), seguiu seu caminho rumo ao apartamento ao lado atrás do irmão. - Os dois só estavam se aproveitando de uma instigante noite de sábado no sofá da sala. Afinal, qual de nós nunca se aproveitou desses raros momentos de vazio nisso aqui não é? - E fechou a porta, eu revirei os olhos.

- Beca, Beca, Beca. Você nos mata de orgulho! - Marcela disse, pulando em cima de mim, subindo nos meus ombros, meio bêbada.

- E vocês me matam de vergonha. - Falei, jogando-a no sofá, rindo.

- Cadê a Lice? Ainda não chegou? - Verônica perguntou, a caminho da lavanderia ao lado da cozinha pra pegar sua toalha pink berrante.

- Ainda não chegou. - Eu disse, sentando no sofá, deixando Marcela vir deitar a cabeça cheia de cachaça no meu colo.

- Quem diria que este dia iria chegar! - Manifestou-se Verônica, indo pro banheiro com um certo desequilíbrio ébrio que fez o corredor parecer mais cheio de curvas que o normal. - Nós três em casa antes da Alice! É quase que um milagre minha gente, esse Pimenta... Orégano...

- Sal. - Corrigimos Marcela e eu.

- Seja lá qual for o tempero que ele tem no nome, ele merecia ser canonizado por conseguir arrancar a Alice dessa casa até uma hora dessa num sábado à noite. Porque né?! - Ela entrou cambaleando no banheiro, fechou a porta, ligou (sabe lá Deus com que coordenação motora) o mp3 do celular e o chuveiro.

- Bora bicha, contando, 1 2 3, cada posição louca e perversão sexual... - A bocó da Marcela começou, eu comecei a rir. - Agora pronto, nada de rir não minha filha, eu quero detalhes!

- Detalhe de quê, criatura?! Não aconteceu nada... Nem vai acontecer, por enquanto. Eu acho.

- Ave. - Ela falou forçado um ar bravo mas se acabando de rir. Levantou toda tonta do sofá, bagunçando meu cabelo. Deu dois passos e recuperou o equilibrio e por um segundo oportuno, sua sanidade. - Mas é assim mesmo... Não se sinta obrigada a nada não. Faça o que quer que seja, mas só quando você quiser, viu? Bruno é um bom menino, e é claro que você já sabe disso, e credo, porra é essa que eu tô parecendo minha mãe tendo "aquela conversa" comigo?! - Nós duas rimos. - Acho que a vódega afetou meu cérebro mais do que eu previ... Vou ali dormir. E a gente continua essa conversa amanhã, mocinha.

Marcela conseguia ser elegante até mesmo bêbada, seu porte de bailarina lhe caía bem com a cintura afilada no vestidinho rosa que eu tinha desenhado pra ela, segurando os saltos nas mãos e o cabelo amarrado no alto de um rabo-de-cavalo. Ela parou um segundo e deu meia-volta olhando pra mim.

- Mas e o Sal?

- Ele é dela. - Eu disse, dando de ombros. - Estou tentando não pensar muito mais que isso.

- Bruno sabe? - Marcela perguntou, eu fiz que sim com a cabeça. Ela, apoiando seu ombro à parede, fez uma cara que dava pra ver no rosto dela que seu coração estava apertado de um modo sobrenaturalmente empático ao meu. - Você vai ficar bem?

- Vou tentando. Não tem como saber se eu consigo ou não, mas é como dizem...

- Qual a graça de viver sem correr riscos, não é mesmo? - Marcela completou a frase sorrindo comigo. Levantei a sobrancelha, nós duas baixamos a cabeça e fomos para nossos respectivos quartos.

Conversar com Marcela, proteger Alice e estar com Bruno me lembraram coisas que eu nunca consigo lembrar de ter tido. Eles se importavam comigo e era recíproco. De repente senti uma saudade imensa, ela já não me atendia há mais de um mês, mesmo assim disquei o número. Mas era quase uma da manhã, minha mãe podia esperar, amanhã eu ligo. Juro que ligo.