segunda-feira

15 - A Praia (Parte 2 e 3)


- Chegamos mais rápido do que eu me lembrava. - Falei assim que Renato estacionou o carro se espreguiçando, ao lado do de Bruno, na frente do casarão de praia. - Mais rápido do que precisava, na verdade. 

- Se você não queria vir, devia ter inventado uma desculpa. Agora a gente já tá mesmo aqui, seu boy magia já deve estar lá pra dentro e eu quero me entupir de vinho até domingo! - Ele disse, saindo do carro pra pegar as cervejas, as garrafas de vinho, vódega e afins que vieram na mala. 

Respirei profundamente, abri a porta e fui ajudar a botar as bebidas pra dentro por motivos de eu não ia conseguir fazer a sóbria nestas condições. 

- Onde eu boto isso, Alice? - Perguntei, entrando na casa segurando alguns litros de bebidas sortidas. 

- O freezer tá limpinho, aliás, minha tia linda demais já deixou a casa toda arrumada pra gente.

- Beleza. - Andei pra cozinha, Bruno falava irritado com alguém no telefone. Deixei as garrafas em cima da mesa e corri. - Cadê os meninos? Tem que pegar os refrigrantes e as grades de cerveja lá com o Rê. 

Bruno murmurou um "Rê" tão debochado que deu pra ouvir de onde eu tava. Por um segundo me perguntei qual era o propósito dessas pequenas manifestaçõezinhas repentinas e enchi o peito de abuso, daí o segundo passou. Breno, Sal e João desceram as escadas correndinhos. 

- Opa, cervejas, cadê? - Breno perguntou. 

- Lá fora, ele tá trazendo as tequilas que ficaram ainda. - Os três bateram continência ao mesmo tempo e passaram pela porta. Eu e Alice rimos. - Cadê as meninas? 

- Levaram as coisas pra ir arrumando lá em cima, teve uma confusão com a divisão dos quartos. - Alice falou. - Tem problema você dividir o quarto? 

- Nenhum, mas o que foi? 

- Na última reforma, minha tia transformou o outro quarto do fim do corredor praticamente num salãozinho de jogos que acabou virando depósito também, sei lá. 

- Hum, entendi. Acho que pelo Renato também não tem problema não, só não quero ouvi piadinha do Sal depois. - Eu ri. 

- Pode deixar que eu falo com ele. - Alice sorriu, na mesma hora Renato passou do lado, carregando uma das grades com João, ouviu a conversa concordou logo com um "Tô dentro!" e seguiu seu caminho rumo ao freezer. 

- Ótimo. Vocês ficaram no primeiro do corredor, Marcela e João naquele que é mais pro meio, Veronica e Breno no da frente. Sal e eu pegamos o último do corredor e Bruno... 

- Na frente do meu. Porra Alice! - Completei, respirando fundo. 

- Eu não tive culpa, Beca. Quando a gente chegou a manada debandou na minha frente! 

Resmunguei baixinho e perguntei como quem não queria nada: 

- E a garota da vez, cadê? - Alice engoliu o riso e quando eu olhei pra trás, ele mesmo respondeu, puto:

- Ela não vem mais, a outra cama do meu quarto tá vaga agora, querendo aparecer por lá... 

- Que peninha, Bruno. - Eu disse com a mão no meu coraçãozinho. - Vai ter que ficar sozinho o feriado inteiro... 

- O que aconteceu? - Alice me interrompeu, só que eu continuei enquanto subia a escada: 

- Tirando pelas pimpolhas com que o Bruno anda saindo, os pais dela devem ter botado de castigo porque tirou nota baixa no colégio! - Fechei a porta do quarto e tive uma vontade gigante de sumir do mundo, mas antes eu ia sentar a mãozada na cara dele. 

A maçaneta da porta virou depois de uns vinte minutos, eu ainda implorava mentalmente pra voltar pra casa, com a cara enfiada no travesseiro.

- Não não não. - Renato entrou, reclamão. - Eu não vim pra cá pra te ver depressiva não. 

- Como você queria que eu tivesse? - Ele deu de ombros e sentou do meu lado. - Eu evitei qualquer conversa maior que "oi" ou "tchau" nos últimos meses, isso já aconteceu uma vez, Renato. Eu não quero isso de novo. 

- Não quer que ele te deixe de novo ou não quer mais nada com ele? - Eu fiquei calada, não consegui responder. - Só pra constar, eu posso saber o que ele fez pra você se importar tanto assim?

Eu enxuguei meus olhos antes que eu chorasse a história toda de novo e respondi:

- Alguma coisa entre uma pixação de giz e um Toddynho com torrada. - Eu suspirei. - Ele mudou, pra pior. E a culpa é minha. 

- Talvez você devesse falar com ele. 

- É. Talvez eu faça isso... - Eu baguncei o cabelo de Renato, levantando da cama. - Agora anda, eu não te trouxe pra cá pra gente passar o feriado inteiro trancados nesse quarto com tanta bebida lá fora. 

- Não seja por isso, Beca. Nós trazemos a bebida pra cá e eu tenho muitas idéias do que poderíamos fazer trancados aqui dentro. - Ele disse, bagunçando meu cabelo de volta. Eu ri. 

- Anda, deixa de besteira,. - E descemos a escada. 

~

Os meninos lutavam bravamente para defender seus times num campeonato de video-game completamente entretidos e nós nos contentávamos com o baralho na mesa da cozinha, regadas de drinks que Beca fazia com frutas e umas cachaças coloridas. 

- Beca, minha filha... - Chamou Verônica - Todo o dom que Deus não te deu pra cozinhar, com certeza ele desviou presses drinks divinos aqui!

- Pena que hoje eu passo suas maravilhas alcoólicas. - Marcela falou. 

- Como se você tivesse a opção de tomá-las, né Marcela? - Respondeu Beca, me servindo mais um de morango. - Aqueles remédios já te embebedam o suficiente. 

- Olha, bati! - Marcela falou, dando pulinhos na cadeira, mostrando suas cartas. 

- Não bateu não. Tem dois Ás de ouro e um de copas. Você só bate quando tem os três iguais. 

- Mas Beca, o coraçãozinho é tão lindo, de que vale ter tantos ouros e não tê-lo. Ah! Cansei dessa porcaria, desisto. - Nós rimos e largamos as cartas também. 

- Menina Alice que tá só nas viradas de copo. - Verônica observou, eu ri nervosa e virei o drink, todo de uma vez. - Vai devagar, criatura! 

- Alice, você tá pretendendo entrar em coma alcoólico no primeiro dia da viagem, é isso?

- Não, gente. É... É que... Eu to nervosa. É isso. 

- Nervosa com o quê, Lice? A casa tá tranquila, todo mundo bem acomodado, tem álcool e comida pra nego se fartar... - Marcela falou - Qual o motivo pra ficar tão nervosa? 

- É besteira. - Eu disse. - Deixa pra lá. É idiota. Vocês vão rir. - As três sorriram e eu com certeza fiquei mais vermelha que o negócio de morango no meu copo. 

- Que besteira é essa agora? Você sabe que a gente não vai rir de você, bobona. - Rebeca me confortou, afagando o meu braço. 

- Tá. Eu conto se você me der outro disso, Beca. - Eu respirei fundo, quando eu respirei fundo tinha mais coisa de morango na minha frente. Eu virei e falei ainda com os olhos fechados - É que eu to nervosa porque é a primeira vez que eu e o Sal vamos dormir juntos. É isso. Podem rir agora. 

- Own, Alice! - As três quase cantaram, vindo e me agarrar. 

- Do jeito que você tá nervosa, eu pensei que você tinha assaltado um banco sem avisar pra gente! - Verônica disse. - Fica tranquila, mulher. 

- Eu já imaginava que fosse isso. - Beca disse. - De quê você tá com tanto medo assim? Garanto que, te atacar de surpresa no meio da noite, ele não vai! 

- Não é isso. É que... E se ele não gostar? 

- Alice, esse menino lambe o chão que você pisa, ele acha lindo se você dá um espirro, é quase impossível que ele não goste do que quer que você faça dentro daquele quarto! - Marcela respondeu, roubando duas uvas do drink de Verônica.

- É que eu sei quantas primeiras vezes esse filho da mãe já teve e quantas eu não tive. Isso me dá um nervoso, uma agonia. E se eu não tô pronta ainda? - Então Beca falou quase que automaticamente:

- Ele vai entender! Do mesmo jeito que entendeu da outra vez, quando vocês começaram isso de "esperar". Se você não quiser dessa vez, ele vai ter que ter paciência, afinal ele concordou.

- Mas... Eu quero. - Minha cara certamente atingia 50 tons de vermelho escarlate, daqueles, bem embalagem de chocolate Batom. Era difícil admitir, não sei porquê. 

- Como assim "da outra vez"?! - Marcela levantou a sobrancelha, indignada. - Teve alguma "quase-vez" disso aí que eu não fiquei sabendo? É isso?! 

- Na verdade, foi mais para um mal-entendido que uma "quase-vez". - Respondi, Beca contou a história: 

- Eu deixei um pacotinho de camisinha dentro da bolsa que a Alice tinha me emprestado no dia do apagão, acabei saindo sem a bolsa mesmo, daí o Sal viu e pensou tudo errado. 

- Eu fiquei tão envergonhada, tão nervosa que resolvi propor a história de esperar, mesmo que eu não quisesse esperar tanto assim. - Verônica não se aguentou: 

- Até porque, licença Alice, mas com um bofe lindo desses, eu poderia chamar você de guerreira por ter se aguentado esse tempo todo. - Nós rimos por um bom tempo. - Mas você preparou alguma coisa?

- Tipo? - Perguntei ficando ainda mais nervosa. 

- Tipo lingerie, óleos de massagem, música, sei lá! - Marcela sugeriu, eu entrei em pânico. 

- Eu... Eu... Só pensei na lingerie... Ai como eu sou burra...

- Calma Alice. - Beca falou sorrindo e bagunçando o meu cabelo. 

- COMO "calma"?! 

- Tendo calma, pô. Esse estresse todo só vai piorar a situação pra você. Você só tem que estar linda lá, e deixar as vontades, e deixar ele ir te guiando também. - Verônica disse, me dando um copo d'água.

- Vocês têm noção do que é ter que concorrer, que competir, com todas aquelas modelinhos, e groupies, e periguetes, e SIM, TUDO NO PLURAL... 

- Relaxa. Uma hora na vida ia chegar um momento que saísse do seu controle, Lice. Fica calminha que vai dar tudo certo. - Falou Marcela, e Beca: 

- E, caso não queira nada por hoje, é só subir e dormir antes desse campeonato irritante acabar. Ou simplesmente dizer pra ele. O Sal vai entender. 

- O que tem eu? - Ele entrou na cozinha, sorrindo besta. Me deu um beijo na bochecha e foi em direção à geladeira. 

- Nada não, moço. - Eu disse, mais devagar do que planejei, já com a voz embargada, meio afetada pelos drinks de Beca. 

- Beca, você por acaso está embriagando essa menina? - Renato perguntou, apontando pra mim e se chegando perto de Beca. Apertou a bochecha dela e também se encaminhou à geladeira pra pegar algumas cervejas. 

- Eu não to embebedando ninguém não. Sou um fantoche aqui, cara. - Beca falou, dando de ombros e rindo. Renato sussurrou alguma coisa no ouvido dela, não deu pra ouvir o que era, só sei que ele tomou um tapa no ombro junto com um resmungo e seguiu de volta pra sala. 

Sal só ria, escorado na geladeira enchendo o copo de água gelada.

- E você aí, tá rindo de quê? - Perguntei envergonhada. Ele andou devagarzinho até onde eu tava e sussurrou no meu ouvido: 

- É segredo. Só conto se você vier comigo agora. - Eita. Levantei da cadeira, nem olhei pra cara das meninas que era pra não perigar uma crise de riso ou de choro. 

Subi as escadas com a mão dele pegada na minha. Sal parou na porta do quarto, me beijou a bochecha outra vez, e tirou um lenço do bolso. 

- O que é isso? - Perguntei. Ele cheirou o perfume no meu pescoço e sussurrou outra vez na minha orelha, enquanto vendava meus olhos com o lenço. 

- Não se preocupa. Eu juro que nós não vamos fazer nada que você não queira. - Concordei com um aceno de cabeça.

Ouvi a porta abrindo, ele me puxou devagarzinho pelo braço - andei uns três, quatro passos e ouvi a chave girar, trancando a porta. Ele falou um "Calmaí" e em alguns segundos começou a tocar uma música muito boa. Quando ele tirou a venda dos meus olhos, meu queixo quase bateu no chão.

Tinham velas espalhadas por todos os lados e uma rosa, vermelha, sozinha em cima da cama. 

- Eu não acredito que você fez isso. 

- O quê? - Ele perguntou, com a voz aflita - Você não gostou? N-não tem pro-p-problema, eu só quis f-fazer uma coisa bonit... Esquece, esquece. - Ele começou a catar umas velas do chão, agoniado. 

Eu o abracei. O coração de Sal batia acelerado, nervoso, dava pra sentir. 

- Se acalma, moço. Tá tudo... Lindo! 

- Eu amo você. - Ele disse. Eu o beijei. Ele me puxou do chão, me pôs no colo e me deitou na cama. 

~

Eu já estava quase dormindo quando a porta do quarto abriu. Renato cantarolava uma música qualquer do Elton John segurando sua taça de vinho.

- Você fica linda me julgando. - Eu joguei meu travesseiro nele. 

- Eu não estou te julgando. Só não gosto da música. 

- Como você não gosta dessa música, ela é maravilhosa!

- Não me sinto muito bem com músicas românticas. 

- Mas é o Elton! - Ele se jogou em cima de mim, ainda argumentando - And this is your song, e este vinho está incrível, e tem uma cama rangendo no quarto no fim do corredor, e esse barulho magnífico me lembra dos tempos de faculdade quando eu tinha meus surtos heterossexuais.

- Humm, fale-me mais sobre esses surtos fabulosos. - Falei, tomando a taça de vinho da mão dele e bebi um gole generoso. 

- Eu costumava ficar com garotas como você, Beca. - Ele se ajeitou, pondo a cabeça no meu colo. Era meio que uma confissão perdida se misturando com o vinho e a umidade do ar. - Isso me deixava confuso.

- "Como eu"? Como assim "como eu"? 

- Amigas, cheias de personalidade, que me deixavam apaixonado por me deixar conhecê-las. Assim meio bocó, meio genia.

- Mas você ficava com elas pra fingir..?

- Não, não. O que me deixava confuso é que eu me sentia atraído por elas tanto quanto me sentia pelos caras. Mas há muito tempo eu não encontrava alguém como você. 

- Então talvez eu ainda possa apostar minhas fichas no chefe?

- E talvez eu te dê um aumento. - Eu ri, debochada. - E você está tão linda nesta camisa de time, então eu sinto que preciso cantar Elton John para me lembrar do que eu gosto quando você não está por perto. 

Nós rimos mais um pouco e ouvimos o barulho do mar la fora até o sono se jogar em cima da gente. 

Capítulo 15 - A Praia


- Então nós saímos na quarta? - Sal perguntou, sentando ao meu lado no sofá.

- Aham. Marcela já tá bem, dá pra gente viajar de tardezinha e limpar logo tudo por lá. - Breno disse, virando o restinho de cerveja. - Deve ter dunas de poeira.

- E eu vou perder mais um dia inteiro de treino, o Municipal já é semana que vem, gente! 

- Você precisa descansar dessas nóias, acabou de ficar boa dessa enjoadeira louca, ora Marcela! - Bruno falou com a boca cheia de batatas. 

- Tem muito tempo que a gente não vai lá. - Falei, riscando a lista de compras aleatóriamente. 

- Quem vai tanto mesmo? Eu, Marcela, Verônica, Breno, Bruno, a amiga dele... - João engasgou por um segundo, ninguém notou, magina. - Beca, Alice, Sal... Mais alguém?

- Érr, eu sei que eu devia ter falado antes... Mas eu posso levar um amigo também? - Bruno parou de mastigar sua batata, Alice sorriu e Verônica soltou uma risadinha marota: 

- Humm, e quem é o bofe, Beca? 

- Nada de bofe não gente, amigo mesmo. - Respondi, como se não tivesse visto o jeito que Bruno olhou pra mim. - Só amigo. 

- Então ótimo, Beca e o amigo dormem em quartos separados e o resto dos casais dividem? - Sal procurou as confirmações e olhou pra mim com um ar preocupado de quem já sabia que amigo era esse.

- Beleza. - Todos confirmaram.

Dividimos as despesas e guardei a lista de compras na minha bolsa. Alice continuou no colo de Sal mesmo depois que eu saí do sofá, João e Marcela ficaram lavando a louça enquanto Bruno, Verônica e Breno riam de alguma coisa na tv de domingo. 

Eu fui saindo quieta pra escadaria, tentando não ser notada. Nem dois minutos que eu tava lá, sentada, na minha, com meu pratinho de brigadeiro na mão: 

- Amigo, é? - Verônica chegou serelepe do meu lado e sentou. Alice, do mesmo jeito, do outro lado:

- Anda Beca, diz logo quem é? A gente ficou curiosa! 

- Bora Beca, desembucha logo que eu tenho um bocado de prato pra enxugar ainda. - Disse Marcela, dando um tapinha no meu ombro.

- É só o Renato, gente. Não precisa ficar com esses mimimi todo. 

- Beca, não me diga que você tá tendo um caso com o seu chefe. - Alice falou com a voz dela de preocupada. 

- Não gente, não tô não. Ele é meu amigo. Só isso. 

- Sal um dia desses me falou que vocês que ficam de conversinha o tempo todo! 

- E ele dá em cima de você que eu sei, e... - Verônica contava nos dedos.

- E ele é gay, gente. - Eu respondi entediada, enfiando a colher cheia de brigadeiro na boca. 

- Gay?!

- Como assim "gay"? - Alice e Verônica falaram ao mesmo tempo, indignadas.

- Um cara gato daquele devia ser proibido de beijar rapazes por lei. 

- Isso é bem verdade mesmo, viu Marcela? - Verônica concordou. 

- Ele disse que ia pra eu nao me sentir mal lá com o Bruno e a avulsa da vez. Não digam isso pros meninos, por favor. Se Bruno ficar sabendo eu vou parecer mais otária do que estou parecendo agora. 

- Você não tá parecendo otária. - Marcela bagunçou meu cabelo - Tá parecendo esperta, isso sim. 



Quarta à noite. Três toques na porta. E eu ainda tava procurando um canto pra socar a toalha na mochila. 

- Pode entrar! - Falei. 

- Oi Rebeca. - Droga. - Posso pegar a mochila? Só tá faltando a sua.

- Claro, Bruno. - Fechei o zíper, entreguei a mochila pra ele e fiquei com a toalha na mão. 

Ele continuou parado lá. 

- Você vai no carro com a gente ou o seu - Pigarro - amigo vai...? - 

- Ele já deve estar chegando por aí... - Ele concordou com a cabeça, amuado, olhando pra baixo. - Tá tudo bem com você? 

- Tudo bem sim. - Falou, levantando o olhar pra minha cama. - É que eu lembrei... Deixa pra lá. 

- Melhor deixar pra lá mesmo. - Tratei de falar rapidamente, pegando o resto das minhas coisas pra sair dalí o mais rápido possível. - E, hum, a sua amiga, cadê? 

Perguntei num sorriso irônico, enquanto passava pelo corredor. Todo mundo já estava lá fora.

- Ela vai encontrar a gente por lá... - Ele segurou meu braço. - Beca.

Meu coração apertou. 

- Oi. - Buzinas soaram lá fora, uma voz muito parecida com a de Renato gritou: 

- VAMO BECA! - Mas a gente ficou congelado lá, se olhando, sem dizer nada. 

Soltei minha mão da dele. 

- Anda... - Eu disse baixinho. - A gente... Eu tenho que ir. - Saí andando e ele continuou lá parado, olhando pra mim. - Você vai ficar aí?! Eu preciso trancar o apartamento. 

- Ãhn... Não, não. Eu já tô indo. Seu "amigo" chegou né?... A gente se vê por lá. - Bruno falou, acordando do além, andou até a porta, virou pra mim com a mesma cara de cachorro molhado de antes, e disse: - Sinto sua falta.

Então saiu carregando minha mochila e boa parte da sanidade que me restava antes que me ocorresse de dizer alguma coisa. Tranquei a porta fazendo uma lista de palavrões em resmungos, afinal que porra foi essa?! 

Entrei no carro de Renato e bati a porta. 

- Impressão minha ou vocês dois ficaram tempo demais pra pegar uma mochila? - Renato perguntou em seu tom mais charmoso. 

- Tá com ciuminho? - Sorri, beijei sua bochecha. 

- Tô vendo que esse feriado vai ser interessante. 

quarta-feira

Capítulo 14 - Estamos Aqui Pra Isso (Parte 3)


E assim o rancor ia durando quase um mês e meio entre cumprimentos formais de bom dia, tarde ou noite, alternados pelo nível da preguiça de fingir um sorriso, tudo trabalhado no desgosto. Nesse meio tempo eu estudei e trabalhei feito uma vadia, tentando abstrair certas coisas erradas da minha cabeça. 

Eram duas e quarenta da manhã de uma quarta-feira um tanto cansativa quando finalmente o último pinguço largou meu balcão. 

- Quer carona, moça? - Eu sorri esfregando o suor da minha testa com o braço. 

- Chefinho, aprecio sua oferta, mas a sua pessoa mora do lado mais contrário possível do caminho da minha casa. - Renato continuou sorrindo. 

- E quem foi que disse que eu estou indo para a minha casa? - Eu passei a flanela na última gotinha alcoólica sobre o balcão e olhei surpresa descansando as mãos na cintura.

- Hmmm. Olha só que beleza, pelo menos um de nós terá uma noite decente. 

- É só um daqueles casinhos... Nada com esperança, nem romance, ou essas coisas babacas. - Ele falou, olhando pro nada. 

- E já tem tanto tempo que nenhum de nós dois tem dessas coisas babacas que eu to quase aceitando propostas não-babacas pra satisfazer pelo menos meu ego. 

- Ainda bem que conseguimos superar toda essa tensão sexual entre a gente, porque olha, eu até te faria uma dessas propostas. - Eu joguei minha flanela nele, e nós rimos.

Sal se aproximou da bancada, pigarreando.

- Vou fechar o escritório lá em cima e vou pro carro, se quiser a carona, tá tudo de pé por aqui pra você... - Renato falou num sorrisinho malicioso, eu fiz que sim com a cabeça, ele apertou a mão de um Sal claramente indignado com o pedaço da conversa que tinha ouvido, e saiu. 

- Vai pra casa agora? - Sal perguntou, me ajudando a pular o balcão com seus ombros fortes e comprometidos. 

- Aham... - Falei, pegando minha mochila. - Acabei de arrumar uma carona. Algum recado pra Alice? 

- Não, não, eu a vi antes de vir pra cá. - E fomos caminhando devagar pra entrada. 

- Vocês estão bem?

- Estamos sim... Eu tava até querendo falar com você sobre o aniversário dela mês que vem, queria fazer alguma coisa.

- Eu tinha pensado sobre isso também. A tia dela tem uma casa numa praia aqui pertinho, e como coincide com a nossa semana de férias e com o aniversário dos gêmeos também, eu tinha pensado em irmos todos pra lá passar a semana.

- Você pensa em tudo. 

- Ainda não se acostumou com isso? - Ele riu.

- Mas e o nosso trabalho, como fica? 

- Deixa comigo. Eu falo com o chefe. - Sal levantou a sobrancelha e parou encostado no portão. 

- De uns tempos pra cá vocês ficaram bem próximos... BEM próximos mesmo. 

- O que eu posso fazer? - Fiz minha cara mais melosa. - Ele é minha alma-gêmea, o homem dos meus sonhos! 

- Você tá mesmo saindo com o chefe, Beca?! 

- Digamos que eu estou sendo irônica, Sal. Pelo amor de Deus, disso que te deram pra criar esses músculos, não tinha pro cérebro não? - Eu disse dando um pulinho pra bagunçar o cabelo dele. Renato parou o carro na frente do portão e buzinou. - To indo! - Gritei, pedindo com a mão que ele esperasse. - Boa noite, garotão. Aproveita pra dormir um pouco e tirar essas caraminholas da cabeça... 

Eu virei de costas pra ele e comecei a andar pro carro.

- De qualquer forma, - Sal me segurou pelo pulso e eu não vou mentir que todo e qualquer coisa que sequer pensasse ser um pelo no meu corpo se arrepiou e meus joelhos fraquejaram por um segundo. - Cuidado. Por favor, tenha cuidado, Beca.

- Não se preocupe. - Eu tratei de me livrar do contato com a mão dele, então ri, dando um murrinho carinhoso no ombro dele. - Eu sei me cuidar muito bem, garotão. - E saí dali praticamente correndo. Enquanto minha consciência gritava sem parar: "Ele é dela, Rebeca." "Ele nunca vai ser seu!" "Você ainda não parou com essa palhaçada?"

Entrei no carro e fiquei calada até chegarmos no portão da república. 

- Você tá muito quieta. 

- Não é nada. - Tratei logo de me achar um sorriso no canto da boca e arquear a sobrancelha. - Acabo de lembrar que eu ouvi alguns boatos sobre nós dois termos um caso.

- E nós temos? - Renato perguntou, muito sedutor. 

- Ainda não, chefinho. - Eu disse dando um beijinho na bochecha dele, abri a porta e saí. - Ainda não.

- Vou me lembrar disso! - Sorri, pondo minha mochila nas costas. 

- Eu também, principalmente quando eu estiver deixando de dormir pra terminar dois trabalhos da universidade enquanto você estiver na gandaia. 

- Se quiser vir também, eu sempre quis tentar uma coisa assim a três. - Eu ri, muito.

- Muito obrigada, mas essa eu vou passar. O recalque é todo meu. 

- Boa noite aí, eu vou indo... Acho que tem alguém esperando por você alí em cima. - Olhei pra trás, Verônica e uma garrafinha de café, sentadas lado-a-lado no primeiro degrau da escadaria, me dando tchauzinho com a mão.  

- Boa noite pra você também, e cuidado por aí na vida. - Renato sorriu e saiu. Fui subindo a escadaria. 

- Ainda acordada, amiga? - Perguntei, sentando do lado dela.

- Fiquei acordada te esperando pra você dizer o quão linda eu sou. - Ela disse, muito seriamente, virando o restinho de café na xícara. - Eu fiz a sua parte escrita naquele trabalho em dupla de História da Arte, fica faltando só você me dar os croquis pra anexar no de Introdução à moda. 

- EU JÁ DISSE QUE VOCÊ É UMA LINDA? - E pulei em cima dela num abraço, ela riu. - Por que você fez isso tudo, criatura? Deve ter dado um trabalho da porra fazer aquilo tudo sozinha Verônica! Você devia ter deixado pra eu terminar! Você é uma linda, mas realmente devia ter deixado pra eu terminar.

- Beca, você tá fazendo três turnos pelo menos três dias na semana, no centro comunitário, na universidade e na boate, trabalhando nos finais de semana, quase nem para mais aqui em casa pra gente reclamar da sua comida ruim ou botar a conversa em dia... E eu também não gosto nada de te ver dormir nas aulas, babando em cima dos seus desenhos. - Veronica falou enquanto bagunçava meu cabelo, eu fiquei calada por um bom tempo, envergonhada. 

- Eu vou te compensar pelo trabalho, não se preocupe. 

- Não precisa. Só arrume seus horários. Pare de tentar se manter ocupada o dia inteiro. - Ela disse. 

- Eu penso em muitas besteiras quando tô desocupada. - Falei sem conseguir olhar pra ela direito. 

- Pensar em besteira de vez em quando até faz bem, principalmente quando é uma besteira tão mal-resolvida. A besteira mais mal resolvida da cidade. 

- Faz bem pra quem? - Perguntei levantando a sobrancelha. 

- Pra alguém que está prestes a ter uma estafa, porque prefere se matar ao invés de encarar seus sentimentos de vez. - Ai. 

- Eu não tô fazendo isso pra fugir de ninguém.

- Apenas de você mesma. - Eu fiquei emburrada. Verônica sorriu, me abraçando por um tempo. - Olha só pra você Beca, você tem andado exausta, sem saco pra sair com a gente e pelo amor de Deus há quanto tempo você não depila suas pernas? 

- Talvez eu esteja um pouco descuidada ultimamente, mas...

- Beca, eu sei que você ainda tá magoada com toda essa história entre você e o gêmeo bonzinho, mas isso não devia ser um motivo pra se esquecer de você mesma, do quanto você é linda e da fila gigante de rapazes que adoraria te fazer esquecê-lo. - Eu ri, olhando pros lados. 

- Não tô vendo fila nenhuma. 

- Você não tem se permitido ver muita coisa há algum tempo. Cê devia voltar a sair com a gente, voltar a se divertir, voltar a se permitir enlouquecer às vezes. 

- Da última vez que eu tentei seguir meus instintos não deu muito certo. 

- Isso não quer dizer que vá dar errado todas as vezes. Mas no fim das contas é você quem sabe e eu não vou me meter mais. - Ela parou um instante fazendo uma careta muito engraçada. - Credo, eu tô parecendo a Marcela bêbada com aquelas crises de conselhos responsáveis dela. 

- É verdade. - Concordei antes que ela voltasse a regar minha cara de novo com todas aquelas verdades. - Obrigada, V. 

- Estamos aqui pra isso. - Ela me empurrou. - Agora anda, vamos dormir que amanhã é meu dia de fazer o café. - Eu ri e levantei, andando pro apartamento. 


O alarme do meu celular começou a gritar aquela música irritante que eu costumava adorar antes de colocá-la como despertador, eu esfreguei meus olhos um instante e esmurrei o aparelhinho algumas vezes tentando encontrar a porra do botão certo de desligar, posto que não havia em mim um pingo de coragem pra levantar aquela hora, quanto mais pra procurar a porcaria de um botão pra calar a boca do Adam Levine - mesmo tendo as mais variadas teorias sobre como fazer isso nos meus mais memoráveis devaneios. 

Sentei na minha cama e fiquei olhando minhas próprias pernas e meu Deus do céu há quanto tempo elas não sabiam o que diabos era uma Gilette? Enfim, cuido disso outra hora. Tinha prometido pra mim mesma que faria o café da manhã no lugar de menina Verônica pra compensar o trabalho. 

Abri devagarzinho a porta do quarto, uma vez que Alice roncava seu vigésimo quinto sono e eu não gostaria nem um pouco de acordá-la. 
Antes mesmo de chegar à cozinha eu ouvi um barulho muito esquisito vindo do banheiro. Dei três toques na porta e abri. 

- MMWUUUULLBRRRLL!!!

- Ah meu Deus, Marcela, você tá bem? - Pergunta idiota, a menina tava quase verde, com a cara enfiada no vaso e vomitando como se não houvesse amanhã. 

Ela fez uma longa pausa pra respirar, sentou no chão, desajeitada e com algum esforço, falou:

- Eu t-tô legal. - Então enfiou a cara no sanitário outra vez. Eu corri pra segurar seu cabelo. - T-tudo sob contro.. WURLLLB! - E lá se foi o resto de seja lá o que ela tenha jantado.

- Minha gente! Há quanto tempo você tá assim? - Perguntei afagando suas costas enquanto ela vomitava suas tripas fora. 

- Hmm... Uma hora, eu acho... WWUUUULLBRRRLLLL... Não sei. 

- Por que você não chamou nenhuma de nós?! Pelo amor de Deus, Marcela, você tá verde, transparente, sei lá! O que foi que você comeu? 

- Aquelas bailarinas filhas da.. WUULLRRLLB..!!! - Agora além dos engulhos, havia soluços de choro. - Eu comi depois do ensaio pro municipal com elas... Devem ter posto laxante ou.. Alguma daquelas porcarias no meu pra... Pra... P-pr... WWUUUULLBRRRLL.. Enquanto eu fui ao banheir... WURLLBL!!!!

- Own Marcela, por favor, não chora senão você vai acabar engasgando. - Eu juntei um pouco de água da pia com as mãos e lavei o rosto dela. - Olha, segura seu cabelo um instante, eu vou alí nos meninos pedir pra algum deles ir ao hospital com a gente. 

- Não... Não precisa de hospital não, Beca... WURRLLBL... Já tá passando, já vai passar. 

- Você tá gelada, Marcela! Sua pressão deve tá muito baixa, você precisa de um médico.

- É a última... Coisa que eu preciso agora, Rebeca! 

- Mas Marcela... - Ela me interrompeu.

- E se me derem um atestado? E se... WULLBRLL.. Se me internarem, eu não vou poder ensaiar o t-tanto que eu preciso...

- Marcela, você não tá entendendo, é a sua saúde, criatura! 

- Não, Beca. - Ela respirou por um longo instante. - É o meu futuro... A chance da minha vida... Eu só preciso de um soro caseiro, e descansar um pouco. Já tá p-passando... 

- Mas Marcela... - Ela interrompeu outra vez.

- Não precisa se preocupar. Eu... Hmm... Eu vou ficar bem. É só uma indigestão... Só isso. 

- Tudo bem, se você quer assim. - Não era muito fácil lidar com a teimosia de Marcela. Eu levantei e segurei o braço dela, gelado. - Eu vou fazer o seu soro, vem. Aqui tá muito abafado, você precisa de ar. 

- E se me der vontade de vomitar outra vez? - Eu dei descarga e a ajudei a se levantar. 

- Você corre pra cá de novo. 

Eu fiz o café e o soro enquanto Marcela ia quase voltando a sua cor normal, mas não comeu nada. 

- Bom dia. Oi, Beca. - Bruno falou quando tirou os fones, num tom mais formal do que o necessário, entrando junto com aquele seu velho conhecido meu, o calçãozinho vermelho de correr. Sentou ao lado de Marcela, passando a mão pelos cachos dela. - Tá tudo bem com você, priminha? 

Marcela fez que sim com a cabeça. Ele sorriu e ficou lá um tempo, depois veio andando em direção a mim e o meu coração em direção à puta que pariu de tão rápido que batia.

- O que ela tem? - Bruno perguntou quase sussurrando pra não acordar Marcela, e pra quase sussurrar ele precisava chegar perto. Perto demais. 

- Quando eu acordei ela tava morrendo de vomitar no banheiro. - Falei baixinho enquanto mexia qualquer coisa que definitivamente não precisava ser mexida na panela, porque eu precisava mexer em alguma coisa pra não entrar num colapso nervoso. - Eu pedi pra te chamar, pra levá-la pro hospital mas ela não quis. Alguma coisa sobre atestado e os ensaios que ela ia perder, coisa assim. 

- Marcela ainda vai se matar pelo ballet qualquer hora dessas... - Ele disse, pegando com a mão algo da panela que eu mexia. 

- Eu tô preocupada com ela. 

E então vieram as três palavras que me deixaram com as pernas bambas.

- Mas vem cá... - Bruno falou se chegando mais perto e não tão discretamente assim, me afastei.

- O quê?

- Vo... Você pediu mesmo pra ir me chamar? - Sério, Deus. Eu podia ter começado meu dia sem essa.


- Você entendeu o que eu quis dizer. - Falei e saí andando pelo corredor. Por causa de um orgulho que não seria derrotado outra vez, mesmo com o coração inchado de saudade.