segunda-feira

Capítulo 13 - Galpão (Parte 5)

Olhei pra ela, na minha frente com os braços cruzados esperando que eu dissesse alguma coisa. Mas eu não sabia o que falar. Eu não fazia a menor ideia do que dizer. Então eu agi.

- Que porra é es...?!

Agarrei a cintura dela até tirar seus pés do chão, e antes que as sinapses inundadas de álcool pudessem causar alguma reação, eu a beijei como se o mundo fosse acabar. Imaginando se o coração do desconhecido da festa disparava louco feito o meu com o beijo dela ou se essa macumba com efeito colateral era só em mim.

Eu beijei Rebeca por horas, que nem fosse um castigo e um presente de natal ao mesmo tempo, como se arrancar um pedaço de mim me deixasse mais forte, num pedido de desculpas desesperado dentro de uma acusação rancorosa de afeto. Amarrando meus braços ao seu redor, enquanto ela ainda tentava esmurrar meus ombros na esperança de se livrar e até depois de se dar por vencida, abraçando minha nuca e envolvendo suas pernas em volta de mim.

E só Deus sabe como foi que eu abri a porta daquele apartamento ou como conseguimos chegar no quarto dela.

Eu só sei que a quis com toda a raiva que eu tive em não poder tê-la, com toda a vontade que eu tive de nunca mais voltar pra ela, eu a quis com a certeza de que tudo mudaria. Bem como suas pupilas dilatadas, a respiração ofegante, o resto quase-nada de juízo e suas unhas vermelhas cravadas nas minhas costas me queriam de volta.

Eu só sei que eu perdi totalmente a noção do tempo, que seus jeans e a minha camisa começaram a se jogar no chão sozinhos, junto com a blusa dela e a minha calça ia tudo tomando o mesmo rumo.

Eu só sei que os dois pares de mãos tinham vida própria, caminhavam juntos pelo fim da madrugada e sem restrição alguma. Que o cheiro, os beijos e o desenho dela iam se guardando em mim e que aquelas mordidas iam deixar marcas. Que o ar parecia rarefeito e a gente fechou as cortinas tentando pausar o nascer do sol, pra ele demorar um pouco mais antes de trazer a realidade de volta. Porque sem dizer uma palavra sequer, era só a gente como devia ter sido desde o começo e mais nada no mundo, por enquanto.

- Você ainda vai me odiar de manhã? - Ela perguntou meio sóbria, meio adormecida, com a cabeça encostada no meu ombro, me abraçando. Eu não respondi.

~

Eu acordei antes. Sem conseguir decidir se feliz ou infelizmente com plena consciência da noite inteira, sem a menor ideia das muitas horas que este domingo já carregava e sem tirar um sorriso bobo da cara. Então eu levantei da minha cama, tentando não fazer barulho ou não provocar um terremoto, vesti minha camiseta gigante do Patolino, sentei na cama de Alice e fiquei mais sei lá quanto tempo calada, olhando ele dormindo todo lindo com a cara amassada no meu travesseiro, decidida a comprar todas as linhas, agulhas, SuperBonders ou caixas de band-aid disponíveis na face da Terra, pra remendar o estrago que eu tinha causado da última vez.

Abri a porta com todo o cuidado do mundo e fui olhar o resto da casa, muito mais silenciosa que o habitual. Alice dormindo no quarto da frente, sem o menor vestígio de Marcela, e Verônica devia estar com Breno no apartamento do lado.

Tomei os bons comprimidos pra ressaca, achei um resto de pizza muito convidativo, com um "Bom café da manhã, fui lá pro João" escrito na caixa, mas mesmo assim resolvi incorporar a moça prendada e fazer umas tapiocas pra comer tomando café, preto, forte e sem açúcar.

Pouco tempo depois, ouvi passos preguiçosos vindo do corredor, e quando eu me virei ele tava lá, encostado no vão da porta sem sorriso torto, ou bom dia sequer.

- Eu fiz tapioca. - Eu disse empurrando um dos pratos pra ele, Bruno continuou me encarando e sem se mover um centímetro. - Me desculpa por ontem.

- Você não me deve desculpas. - Ele falou, empurrando na bancada o prato de volta pra mim. - Melhor eu ir agora.

- Fica aqui, o povo ainda tá dormindo. - Eu ia falando e ele andando em direção à porta. - Eu fiz café e a gente tem muita coisa pra conv...

- Não, Beca. Você não lembra? - Bruno abriu a porta, tirando os olhos de mim.

- Eu só quero saber o que você quer de mim.

- A gente não devia fazer isso.

E foi embora sem olhar pra trás. Usar pra poder jogar fora, era disso que se tratava. E de repente era tudo um jogo sem significado algum. E essa madrugada não tinha sido nada, nada além de uma revanche.

quarta-feira

Capítulo 13 - Galpão (Parte 4)

Segurei a mão dele e saí carregando-o para o emaranhado de gente dançando no meio da pista, procurando o lugar com a melhor vista possível que certa pessoa pudesse ter, obviamente sem parar um segundo sequer com os múltiplos flertes recíprocos. Só aí começamos a dançar. E dançar. E dançar.

Uma eu muito concentrada em não torcer o pé - visto que salto e alcóol nunca me foi lá tão boa combinação, mas ainda assim rebolante como nunca, sob uma daquelas músicas que você conhece sem ter a menor ideia do nome ou quem canta, eu dançava com o menino do nome de uma sílaba só, querendo que fosse Bruno no lugar dele. E cada pedaço do corpo dela que Bruno ia mapeando (vulgo passando a mão mesmo), mais raiva me dava de eu não ter me deixado estar lá ao invés dela, então eu ia me chegando mais perto de Gui, eu ia me chegando mais rebolante, provocando de propósito o olhar raivoso que não parava de queimar minha nuca.

E, como eu não valho sequer o que o gato enterra, comecei a ceder um pouco às investidas do rapaz - com direito à cheiro no cangote, mãos gaiatas passeando sabe-se lá por onde e, claro, a clássica e infalível tática do sorriso maroto mordiscando o lábio inferior, com a plena certeza que o rapaz de sorriso torto e ombros bonitos com a periguete que não era eu estava acompanhando a cena passo-a-passo.

- Tem gente demais aqui, você não acha? - Gui perguntou e eu concordei. - Você não quer sair daqui, dar uma volta, ir pra um lugar mais calmo, só nós dois?

Sente o drama.

- Ér...

Alice estava com Sal, por demais concentrada em toda a sua pegação perto do bar pra conseguir dar voz à minha consciência, que tem esse mau costume de ficar completamente muda quando eu começo a beber. Verônica (que eu só conseguia identificar pelo cabelo e a cor da blusa) num canto mais escuro fazia sabe-se lá o quê com um rapaz cuja cara não dava pra ver, mas provavelmente era Breno, ou seja, eu prometo que nunca mais vou beber se minhas amigas estiverem entretidas o suficiente para não vir me salvar de mim mesma.

Foi quando por um segundo eu olhei de lado, lá estavam os braços dele envolvendo a cintura da garota, beijando-a e deixando pra mim um sorriso em deboche, depois de deixar a boca dela. Daí eu resolvi fingir que tava pouco me fudendo.

- Acho melhor a gente ficar por aqui mesmo, não quero que a minha carona me perca de vista. Então... Você vem sempre aqui? - Daí eu beijei o outro rapaz como se ele fosse o último cara com os dentes da frente na face da terra. Ele me beijou, e eu o beijei de volta com tanta vontade quanto.

Porque Bruno não me queria mais, mas eu queria que fosse ele no lugar desse cara que eu conheci há menos de uma hora. Queria que fosse o meu amigo de infância, com o beijo doce que me protegia, passando a mão pela minha nuca enquanto o tempo passava sem sequer a gente notar, e não um estranho que eu nunca tinha visto da vida até essa noite, cujo único lugar onde ele queria passar a mão era definitivamente baixo demais para ser minha nuca.

Daí eu me dei conta de que tinha feito tudo do jeito errado. Daí eu me afastei de Gui, falando qualquer coisa parecida com um "Vou ao banheiro". Daí eu saí andando de cabeça baixa - morrendo de vergonha de mim mesma, e nunca mais voltei. Daí eu bebi uma carrada de tequila de uma só vez e a última coisa que eu consigo me lembrar é dele invadindo o taxi enquanto eu tentava lembrar do endereço de casa pra dizer pro cara.

~

- Que porra é essa agora?! - Ela disse quando eu abri a merda da porta daquele taxi e entrei sem a menor cerimônia.

- Nós vamos acabar indo pro mesmo lugar, de todo jeito.

- Ah, beleza. - Beca falou, irritada, procurando (sem o menor sucesso) o lugar onde a outra porta do taxi abria.

- O que você tá fazendo? - O taxista fingiu que não tinha me visto invadir o taxi e resolveu tomar como rumo o endereço que Beca havia dado.

- Dando espaço praquela menina que tava com você, obviamente. Você não passou a vida inteira se gabando de ser um gentleman? Gentlemans levam as periguetes que pegam pra casa. A não ser que vocês não tenham conseguido decidir se era na sua casa ou na dela e tenham feito alí mesmo, pra aproveitar o banheiro unissex né?

- Para de falar besteira, Rebeca.

- Por que? Vai dizer que você não queria? Porque do jeito que vocês dois estavam numa encenação quase perfeita de como conceber um novo ser humano alí mesmo na pista de dança...

- Se eu e a Ju estávamos enc... - Beca revirou os olhos e gritou com uma raiva que eu nunca tinha visto:

- DÁ PRA VOCÊ PARAR DE CHAMAR ESSA PERIGUETE ASSIM?!

- E por que ela é uma periguete?

Ela ficou calada, fingindo estar entretida com os prédios que iam passando pelo caminho. Eu continuei:

- Pra mim, agir como uma periguete era aquilo que você tava fazendo com um avulso que não deve saber nem o nom... - Ela me olhou, rangendo os dentes de tal forma que eu imaginei o maxilar dela estalando e se partindo em dois. - Esquece.

- Anda, CONTINUA. - Eu hesitei. - Continua, pode falar o quão vagabunda você pensa que eu sou, eu aguento!

- Beca...

- Não, Bruno. Pode continuar com o seu discurso, tava REALMENTE interessante.

- Você entendeu o que eu quis dizer! Você sabe que tá errada! Aliás, como quase sempre! Nem vem dar uma de vítima pro meu lado, eu não caio mais nessa!

- Pois é, você já pegou a vaga de vítima por aqui, não é "Bruninho"?

- Dá pra você parar de fazer essas alusões grotescas à garota que tava comigo?

- Ah, Bruno, faça-me o favor...

- Ela me trata de um jeito que você nunca nem se deu o trabalho, ela me dá atenção, ela é carinhosa.

- Legal! Ela é a sua princesinha de contos de fadas. O único lugar que tem pra mim é o da vadiazona má que quebrou o seu coraçãozinho! TODOS CHORA.

- Era com ela que eu devia estar agora, e não dentro de um taxi discutindo com uma bêbada que mal sabe o que faz ou fala!

- Beleza, então agora me diz O QUE DIABOS VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI? Porque definitivamente não fui eu que te chamei.

- Dá pra parar de ser babaca só por um segundo, Rebeca?

- Não. Não dá.

- Eu vim porque fiquei com preguiça de ter que ir te procurar depois, caso você se perdesse por aí. O que não seria coisa muito difícil, vendo o quanto você está bêbada!

- Quer dizer que agora eu preciso de um guarda-costas!

- Não. De uma babá!

Ela se calou. E foi uma eternidade até o taxi parar e eu conseguir falar:

- Rebeca...

Ela não olhou pra mim.

- Eu já estou em casa, já fez a sua boa ação, ganhou uma estrelinha de bom menino, agora por que você não volta pra festa, ou pra sua adorável acompanhante ou só vai se fuder de um vez? - Ela tirou umas notas amassadas de dentro do bolso, dizendo pro taxista: - Pode ficar com o troco, moço. - E saiu abrindo o portão, subindo a escadaria cambaleante.

Eu saí correndo atrás dela.

- Rebeca... - Ela não parou de andar. - Rebeca, deixa de besteira e olha pra mim! - Ela se desequilibrou por um instante, mas não parou de andar. - Rebeca!... REBECA! - Ela respirou o mais fundo que um ser humano é capaz, parou, virou e ficou me encarando.

- O quê?

sábado

Capítulo 13 - Galpão (Parte 3)

Dois minutos (e mais alguns goles) depois, lá estava eu, atolada entre a cover das chiquititas que se encontrava no colo do próprio Bruno e Alice no colo de Sal e Breno dirigindo, com Verônica ao lado, à caminho de uma outra festa onde nenhum de nós tivesse que servir drinks, e onde eu pudesse abrir a temporada de caça, posto que vocação pra castiçal nunca fora minha praia.

- Então, Rebeca. - Começou a biscate infante, tentando iniciar uma conversa amigável com a única pessoa propensa a cravar as unhas nos olhos dela apenas o suficiente para que ela precisasse de um cão-guia. - Bruninho me falou que foi você quem arranjou o convite. Obrigada.

O dispositivo de sarcasmo do meu cérebro foi ativado ao nível máximo (ainda sem decidir se o que o disparou foi o "Bruninho", ela ter pensado que eu arrumei o convite pra ela, ou o fato dela parecer bem mais jovem e simpática e bonita que eu). Um dos sorrisos mais cínicos do meu acervo com uma resposta tão ácida quanto as dezenas de limões que eu havia metido nos drinks a noite inteira. Mas Alice foi mais rápida que o meu raciocínio estremecido pelo álcool corroendo determinadas partes do meu bom senso. Segurou minha mão, fazendo um rápido sinal negativo com a cabeça e mudou de assunto para o quanto ela estava alegre em ver Sal e eu trabalhando juntos, me deixando extraordináriamente mais confortável. Ou não. Ou definitivamente não.

Isso monopolizou a conversa até chegarmos à entrada da outra festa, quando pararam pra prestar atenção no tanto de pessoas que era possível caber num Astra enquanto descíamos dele, não teve nenhuma alma sã pra calar minha boca e eu finalmente pude começar a destilar meu veneno na criança indefesa de Bruno.

- Vocês ainda não me contaram a história de como se conheceram, não é Meli...? Tai...? Como é mesmo o seu nome?

- Juliana. - Ela disse tentando sorrir mais do que realmente queria, Alice logo atrás da gente só fazia rir e balançar a cabeça negativamente olhando para a minha pessoa.

- Juju querida, claro, como eu poderia esquecer, então, vocês se conhecem há muito tempo? - Perguntei, entrando na boate, sendo horrorosamente simpática e sedenta por álcool como nunca dantes navegante pelos caminhos tortuosos da imensidão oceânica dos porres.

A meretriz em forma de guria iniciou todo um discurso provavelmente ensaiado - sobre uma loja de camisas masculinas, um sorvete de casquinha, as formidáveis costas do Bruninho dela e uma chuva de flertes mútuos há mais ou menos duas ou três semanas - como se eu fosse realmente prestar atenção. E quando ela terminou de contar toda a historinha sem graça de se querência à primeira vista dos dois a única coisa que eu consegui dizer foi:

- Aham, fofo, mas vem cá... Quantos anos você t...? - Verônica e Alice me interromperam, carregando-me violentamente para o desconhecido.

- Tá bom, Beca. Você já falou o suficiente para se odiar quando acordar amanhã. - Verônica disse, comentendo o erro fatal de me encostar na cadeirinha do bar.

- E vocês queriam que eu fizesse o quê? Ficasse calada vendo esse bocó esfregar a criança que ele adotou como a da vez pra comer, na minha cara?

- Essa aura nebulosa vindo da sua direção é tudo ciuminho, dona Beca? - Alice começou.

- Claro que não.

- Como não, Rebeca?! Você tá verde de tanto ciúme do fato de Bruno estar aqui e - Verônica apontou e lá estava Bruno enterrando a língua dele inteira na garganta da menina. - não ser você sendo parcialmente deglutida alí nos braços dele.

Eu me virei pro cara do bar:

- Moço, uma vodca, por favor. - Olhei outra vez pra elas - Vocês estão completamente loucas. - Peguei o copo com a dose e virei. - Outra dessa, por favor moço. Vocês duas estão ficando doidas.

- Não moço, não precisa. - As duas disseram ao mesmo tempo, eu olhei outra vez pra Bruno, sorrindo cafajeste pra ela de um jeito que ele nunca sorria pra mim, dançando a música lenta com as mãos na cintura fina dela, trazendo-a mais pra perto.

- Ah, precisa sim! - Eu disse, tomando o copo da mão do cara do bar e virando tudo de uma vez só antes que as duas pegassem antes de mim.

- Você já tá meio bêbada, Rebeca. Vamos parando por hoje.

- "Parando"? - Disse rindo, ao levantar da cadeirinha do bar. - Meus amores, eu só comecei. - Alice revirou os olhos. Verônica riu. - Agora vocês podem voltar aos seus digníssimos. Eu vou caçar um para mim, uma vez que eu cansei de segurar vela de vocês por hoje. - Eu olhei pra Bruno de novo. - De todos vocês.

Olhei de lado, havia um belo rapaz, ombros fortes, cabelo curto, moreno, lindas e convidativas mãos. Alice e Verônica deram a volta e foram para seus boys. Joguei o cabelo pro lado, mordi o canto da boca e sorri, dando dois passos rebolantes em sua direção.

- Oi. - Falei pra ele, enquanto pedia um outro drink ao cara do bar.

- Olá, moça mais bonita da festa. - Velho truque do sorriso tímido. - Eu até me ofereceria pra pagar este drink para uma mulher linda assim, se a festa não fosse open bar. - Sempre funciona.

- Tenho certeza que um rapaz tão educado assim até me chamaria pra dançar. - Respondi tomando um curto gole da taça que o moço do bar me havia entregue, checando a localização de Bruno, se esfregando horrores na crica no meio da pista de dança, uma vez que o que eles tavam fazendo tava bem longe do verbo dançar. O meu alvo falou no pé do ouvido, chegando mais perto:

- Esse rapaz educado precisa necessariamente saber dançar?

- Não, até porque seremos dois sem saber em que parte do outro pé pisar primeiro. - Ele riu e tirou minha franja dos olhos. - Posso saber o nome desse rapaz pra pararmos de falar na terceira pessoa?

- Gui. - Ele disse, estirando a mão pra mim. - E você?

- Rebeca, prazer. - Você não tem ideia do tanto.