domingo

Capítulo 9 - Escadas (Parte 2)

Saudade era pouco quando eu procurei uma palavra pra definir o que eu senti, depois do jantar, ao ver Di cobrir uma Isa que dormia numa paz tão doce, dar um beijo de boa noite na testa dela, depois de carregá-la até a cama. Era o que ela fazia quando cuidava de mim, tanto tempo atrás. Uma eu preguiçosa costumava fingir estar dormindo só pra ela me trazer no colo.

Ela me pegou olhando do vão da porta rosa, perdida em todas aquelas memórias de quando eu ainda me sentia da família, tentando prender o choro, mas uma lágrima traiu o movimento e caiu, suicida e solitária, escorregando no meu rosto. Di olhou pra mim como quando eu era criança, me danava no chão e esfolava o joelho, mas me fazia de forte engolindo o choro enquanto ela passava Merthiolate nas minhas perebas.

Não precisávamos de palavra alguma, ela me abraçou e eu chorei a saudade, o joelho esfolado, chorei o tempo chuvoso do lado de fora fazendo barulho na janela, a amizade, a distância, chorei Sal, Bruno, chorei a indiferença que tanto me fazia implodir, só que sem precisar me esconder como fazia pra boa parte do mundo. Eu inundei o ombro dela, chorando todas aquelas mágoas, lembranças e - nem mesmo por um segundo, ela soltou do abraço, exatamente como antes. Eu sabia que não precisava ter vergonha de chorar do lado dela, Di não era como o resto do mundo, ela era um pedaço de mim.

Eu ri enxugando as lágrimas, ela sorriu balançando a cabeça, com tanta saudade nos olhos - imensamente castanhos - quanto tinham nos meus.

- Eu sinto tanta falta.. Ela deve sentir também, Beca.

Eu dei de ombros e continuei rindo sem motivo algum, ela beijou minha testa, e saiu andando pelo corredor de paredes em azul tão claro. Morta de sono, me arrastei por cada degrau da escada, tentando não prestar atenção no que Alice falava ao telefone - sem sucesso algum, obviamente:

- ...Mas eu acho que ela vai ficar bem sim. - Ela concordava com a voz do outro lado da linha. Voz que eu sabia muito bem de quem era. - Não vejo a hora de te abraçar, de sentir seu cheiro, de beijar você... Eu também já vou dormir também, vou sonhar com você... - Alice sorriu um sorriso diferente dos que eu me lembrava e ninguém conseguiria ter noção do quanto as quatro palavras seguintes àquele sorriso me apavoraram. - Eu tambem te amo, Sal. Boa noite e durma bem, meu anjo... Tá... Eu vou sim... Tchau.

Alice desligou e eu tratei de subir o resto da escada, indo na direção do meu antigo quarto e me jogando na cama que já não parecia mais tão minha, assim como tudo naquela casa. Fechei os olhos, sentindo um aperto no peito, sabendo o quanto iria ser difícil dormir sob este teto. Principalmente quando eu não tinha pra quem ligar pra dar boa noite, e infelizmente, este era o caso.



Acordei transtornada com uma sensação terrível de estar num deja vu, abri meus olhos e vi, as paredes vermelhas que tanto mamãe se recusara a pintar por não ser muito adequado para a moça direita que ela tão loucamente desejava que eu fosse, juntas à que costumava estar tomada de pôsteres e fotos - que eu tratei de remover e pôr numa caixa no dia que fui embora, e agora jazia branca, sem vida.

Alice dormia quieta no colchão ao lado da cama, eu levantei e andei até meu velho guarda-roupas, tentando não fazer barulho e é óbvio que a porta rangeu loucamente quando eu a abri devagar. Ainda guardava o mesmo cheiro bom de roupa recém lavada, trazendo mais uma vez à minha cabeça o assustador sentimento de estar em "casa" outra vez.

Olhei bem, parecia que alguém havia mexido, as roupas que restaram ja não estavam mais nos cabides. Então me desesperei pra checar, com o coração acelerado, abri a segunda gaveta e ainda estava lá. Tão cheia de poeira a ponto de quase não dar pra ver o preto da caixinha, segurei nas mãos e soprei o descaso do tempo que estive longe e rodei a chave uma, duas, três vezes, delicadamente. E ela abriu, em silencio, deixando a bailarinazinha girar ao som de uma melodia calada, guardando meus tesouros secretos.

Uma correntinha fina de ouro - herança da minha vó, tão frágil que dava pena de colocá-la na mão, um pingente em forma de gota que eu achava lindo demais pra merecer carregar no pescoço. Uma folha de caderno dobrada e rabiscada com o meu primeiro croqui de um vestido, meigo, feito no meio de uma aula de química no primeiro ano. A pulseira da sorte, que eu e Alice haviamos feito, uma pra cada, na quarta série, a minha azul com vermelho e a dela preta e branca.

Uma foto minha, horrorosa, com sei lá, 12 anos. Uma foto engraçada de Alice e eu fazendo careta pra câmera de tia Déia, com a cara melecada de Frutili, aos provaveis seis aninhos a julgar pela adorável falta de metade da minha sobrancelha esquerda. Uma de Marcela nos ombros de Breno, Bruno comigo no colo, e Alice implícita por ter tirado a foto, no aniversário de 15 anos dos gêmeos. E debaixo de todas elas só mais uma fotografia, minha mãe segurando Isa recém-nascida nos braços, com um sorriso no rosto nunca dirigido a mim, mas mesmo assim eu não conseguia deixar de amar aquela foto.

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