quarta-feira

Capítulo 9 - Escadas (Parte 3)

Decoramos toda a casa e eu sentei no primeiro batente depois de um belo e abençoado banho - posto que praticamente desfaleci de suor e falta de ar de tanto encher os balões cor-de-rosa que estavam espalhados por todos os cantos. Isa não parava de babar em cima do vestido que eu tinha dado para que ela usasse no aniversário. Di pondo as velas sobre as calóricas camadas de chocolate na cobertura do bolo e Alice pondo o granulado nos brigadeiros quando a campainha tocou pouco depois das cinco da tarde.

Di me olhou amedrontada, Alice engoliu no seco, eu tremi com um medo que eu nunca imaginei sentir. E Isa, bom, Isa foi abrir com um sorriso de orelha à orelha e seu vestido novo, a porta sem sequer notar toda a tensão, mas graças ao bom Deus eram só duas ou três amiguinhas (não me dei o traballho de contar) que tinham se adiantado.

- Sinceramente eu não tenho a menor idéia do que eu tô fazendo aqui. - Falei pra Alice, sentando ao lado dela, enquanto chegavam mais e mais amiguinhos. - Ela vai chegar a qualquer minuto, e vai me expulsar à vassouradas.

- Você está aqui porque você estava com saudades, e porque é o aniversário da sua irmãzinha. Escândalo a gente sabe que ela não vai fazer, ela não vai acabar com a festa da Isa. Fica calma e pára de comer os brigadeiros!

- Por via das dúvidas, eu vou logo lá em cima trazer as malas pra baixo pra não parecer que a gente dormiu aqui, aproveitando que já tá tudo arrumado lá em cima. - Afanei mais um brigadeiro pronto, levantei da cadeira e comecei a subir as escadas, quando:

- Eu não vou perguntar o que você está fazendo aqui. - Um arrepio ruim andou por toda a minha espinha dorsal e tomou conta de toda a minha alma. Eu ainda estava de costas, não consegui me virar. - Não sei quem te convidou e prefiro continuar não sabendo. Quando acabar o aniversário da minha filha, você por favor pegue suas coisas e volte pro lugar que você está vivendo seja lá onde for.

Eu respirei o mais fundo que consegui descer. Dei meia volta. Lá estava ela, ainda a mulher mais linda do mundo, parada e me olhando com seu típico ar superior como se tivesse algo fedendo por perto.

- Tudo bem, dona Sônia, a senhora não precisa se preocupar. Assim que acabar eu vou embora, vou continuar sem estragar sua vida perfeita com a sua família perfeita. - E reuni todo o sarcasmo e ironia existentes no meu lado negro num sorriso alegre.

- Como queira, eu só não quero você aqui. - Minha mãe se deu o trabalho de me dispensar um sorriso educado e saiu do meu campo de visão sem se importar, jogando na minha cara a pior espécie de essência destrutiva que se pode direcionar a alguém: o desprezo, mais conhecido por alguns como indiferença. Sutil e apático modo de jogar alguem no chão, chutar suas costelas, cuspir diretamente no seu rosto e sair como se nada tivesse acontecido.

Servi refrigerantes, salgadinhos e brigadeiros - derrubando boa parte deles, obviamente. Fui pedida em casamento por um lindo garotinho entre sete ou oito anos de idade. Corri e vomitei no banheiro uma ou duas vezes, quando encontrava o olhar não-arrependido da minha mãe, me achando a mais tapada criatura do mundo por ter tido a esperança que seria diferente. Ele, o marido dela, por acaso também estava lá, imundo por dentro porém impecavelmente vestido com uma de suas camisas cafonas que não combinava com a calça igualmente horrorosa.

Praticamente todo mundo já tinha ido embora. Eu, Alice e Di tentávamos juntar o lixo e arrumar a bagunça deixada na sala, Isa tinha adormecido no seu quarto em cima dos presentes espalhados pela cama.

- Eu não entendo a dificuldade desses pirralhos de acertar a porcaria do papel no cesto de lixo. - Alice disse enquanto varria.

- Eu me faço a mesma pergunta desde que me entendo por gente, acredite Lice. - Nós três rimos. - Beca, você pode ir lá na cozinha buscar a pá? - Concordei e fui atravessando o corredor quando ouvi aquela voz que me causava tanto nojo discutindo com minha mãe.

-... E pelo amor de Deus, o que é que ela está fazendo aqui? Pensei que tinha deixado bem claro pra você, Sônia. Esta sua filha não vale nada, eu não a quero perto da minha menininha, nem ela, nem suas amigas igualmente devassas. A gente não sabe nem o que diabo ela anda fazendo por lá!

- Isa chamou ela, eu não pude fazer nada. Eu não queria ela aqui tanto quanto você. Até mais se possível. Isa é minha filha, nossa filha. Eu não tenho nenhuma outra. - Ainda era a mulher mais bonita do mundo ali, mas desde muito tempo eu não fazia a menor ideia de quem ela era.

- Então por quê não a mandou embora de uma vez? - Ele perguntou inquisidor em todo o seu ar de superioridade, olhando para sua mulher submissa e desprezível que não sabia o que lhe dar em resposta. Eu não resisti.

- É, dona Sônia. Por que não mandou embora a piranha exilada da família assim que a viu? Ah, é mesmo, que absurdo para a alta sociedade na vizinhança, um escândalo a periguete ser expulsa pela segunda vez de casa justamente na festinha de aniversário da princesinha da casa.

- RETIRE-SE DAQUI IMEDIATAMENTE! RETIRE-SE DA MINHA CASA! - Ele gritou cuspindo. Eu rangia os dentes sem conseguir medir o ódio que se apossava de mim quando Alice e Di correram para a cozinha.

- Vamos embora daqui, Beca. Já chega. - Alice sussurrou na minha orelha segurando o meu braço. - Foi uma péssima idéia, me desculpe.

- Beca, não vale a pena. - Di falou como se por um acaso eu fosse prestar atenção, soltei Alice do meu braço e continuei.

- Sinto muito, Sr. Sou-Adultero-Prepotente-e-Espanco-Minha-Querida-Esposa-Por-Plena-Diversão, até onde eu sei a escritura desta bela casa ainda é no nome da minha adorável ex-mãe, se alguém pode me expulsar (outra vez) daqui, é ela. - Ele pegou o celular e discou um numero de três digitos rapidamente, levando o aparelho à orelha. - Se quiser chamar a polícia, eu tô de boa. Mas é uma cidadezinha pequena, as pessoas comentam, não ia ficar bem pra vocês dois nas colunas sociais, além do mais eles iam AMAR ver todas as provas de agressão doméstica que eu guardei esse tempo todo, não é mesmo?! SEU RIDICULO. - Ele desligou quase que automaticamente, sua cara de cavalo quase roxa de tanta raiva pulsante nas têmporas.

- Anda Beca, vamos sair daqui. Por favor!

- Alice, eu não vou sair daqui antes de dizer tudo que tá aqui engasgado!

- Quem você pensa que é pra chegar aqui achando que pode falar o que quiser?! - Ela finalmente resolveu se manifestar, andando até mim. - VOCÊ NÃO É NINGUEM PARA NÓS. VOCÊ NÃO É NADA PARA MIM.

- Que bom que pelo menos neste quesito nós estamos em pé de igualdade, não é mamãezinha querida? - Eu senti pela segunda vez a raiva, a mágoa e a ignorância esquentarem o meu rosto, sob a mão dela, em mais um tabefe. Mas ao contrário da outra vez, eu não hesitei. Andei ainda mais pra perto, até meu nariz ficar a dois dedos do dela, com toda a coragem que eu não tinha em mim, um coração acelerado a ponto de doer fisicamente, uma bochecha ardendo, pernas e mãos tremendo loucamente. Mas eu PRECISAVA falar tudo. - Pouco me importa o que você acha ou deixa de achar de mim, mas quer saber qual é o meu maior orgulho? Eu nunca vou me deixar ser igual a você. Porque eu não preciso da opinião alheia para ser feliz, ou melhor, pra encenar uma felicidade inexistente. Eu aprendi que eu não preciso me humilhar para um homem DEPLORÁVEL pra me sentir mulher. Eu não preciso fingir que as pessoas são descartáveis. Eu não preciso depender de ninguém. Aliás, eu tenho vivido muito bem se é do seu interesse saber. Sou a melhor da minha turma na universidade, tenho me sustentado bem, até arrumei um emprego. Porque mulheres DECENTES vão atrás do seu próprio sustento, e não deixando sua liberdade de viver pra ser subordinada a um desgraçado desses a vida toda, abrindo mão da felicidade ou até mesmo de uma filha pra fazer as vontades dele. Sabe mãe, eu tenho morado com a minha família, só que eu aprendi uma coisa: Família não é aquela em que a gente nasce por acaso (porque se fosse isso, eu estaria bem ferrada), nem mesmo são os que escolhemos (porque somos humanos e podemos escolher as pessoas erradas com o nosso julgamento imperfeito). Família mesmo são aquelas pessoas que nos escolhem, e não nos deixariam sozinhos no mundo de forma alguma, e só Deus sabe o quão agradecida eu sou por terem me encontrado antes que eu ficasse a à mercê de, ou me tornasse, alguém como você. Até nunca mais, Dona Sônia.

Saí da cozinha, passei pelo corredor, sem esperar Alice peguei minha mochila, e sai correndo de pés descalços pela rua deserta, com as mãos ainda tremendo, os pés formigando, o choro travado na garganta, porém antes de todos esses e principalmente: com a alma lavada.

2 comentários:

Ninguém Te Disse disse...

Smach Mouth - Waste

Priscila Garcia disse...

Caramba!!! Adorei tdo q Beca disse p mãe dela.. se é q a gnt pode chamar isso de mãe né.. A história tá cada dia mais perfeita! Parabéns!! xD