quarta-feira

Capítulo 14 - Estamos Aqui Pra Isso

Eu fiquei sentada naquele sofá, olhando a porta como se tivesse acabado de levar uma bofetada na cara. E olhando a porra da porta eu não sabia no que pensar pra me sentir melhor. Ele havia me derrubado de um jeito que eu não consegui mentir, nem pra mim mesma.

- Por favor me diga que a minha cama não foi maculada. - Alice vinha se arrastando pela parede umas duas horas e meia depois de Bruno ter saído. Esfregando os olhos, sentou do meu lado jogando os pés sobre mim.

- Não se preocupe com isso. - Respondi num sorriso sem graça, olhando pra baixo, tomando um longo gole de café, tentando acordar.

- Bruno ainda tá dormindo? - Ela perguntou.

- Não, ele foi embora. - Eu levantei e fui andando de volta pro quarto antes que ela viesse perguntar qualquer coisa e eu começasse a chorar de tanta ressaca moral pelos últimos cinco ou seis anos da minha vida. - Tem pizza ali na mesa, se quiser.

Ele havia arrumado minha cama, como se nada tivesse sequer cogitado a hipótese de acontecer. E o cheiro dele tinha se empreguinado em tudo bem mais do que deveria. Em tudo, inclusive em mim. Então vamos fingir que eu não chorei feito uma vadia, cheirando meu travesseiro até cair no sono outra vez, beleza?

Acordei com a realidade puxando meu pé.

- BECA! Socorro! Urgente! - Alice.

- O que foi? Quem morreu?

- Meu salto, quebrou. Empresta aquele seu vermelho? O Sal já tá lá embaixo esperando, por favor por favor por favor. O vermelho.

- Pega logo, ta bem aqui debaixo da cama, em algum lugar. - Ela abaixou pra caçar o bendito sapato. - Que horas são?

- Quase onze. - Ela bateu a cabeça no coisa da cama quando eu me sentei. - Ai cacete.

- Humm, tá cheirosa. Menino Sal vai se dar bem hoje?

- Você já se deu muito bem por todos nós hoje de madrugada e além disso a gente ainda tá nisso de ir devagar.

- Em primeiro lugar, a última coisa que me dei hoje na vida foi "bem", e em segundo, se você quiser que eu diga pra ele que você tá odiando isso de ir devagar, eu digo na boa. - Eu ainda consegui rir antes de levar um murro no ombro.

- Se você abrir a boca, eu vou garantir pessoalmente que você não consiga fechar outras coisas nunca mais, Rebeca. - Ela falou, apontando ameaçadoramente o salto na minha direção enquanto calçava o outro.

- Tudo bem, tudo bem, foi só uma sugestãozinha. - Sal gritou qualquer coisa lá de fora, eu baguncei o cabelo dela. - Anda logo, bonitona.

- Vai ficar em casa hoje?

- Amiga, eu tô pensando se eu vou sair desse quarto algum dia.

Alice riu, fechou o sapato, bagunçou um pouco a franja, me jogou um beijinho, sorriu e saiu rodando a saia do vestido, enchendo o quarto de perfume.

Mais de meia hora pra me livrar da extrema preguiça de levantar daquele monte de sei lá, misturado com cachaça, misturado com saudade no cheiro dos meus lençóis.

- Bom dia. - Marcela disse, rindo da minha cara derrotada.

- Bom dia, sua linda. - Dei um beijinho na bochecha dela e sentei no chão, roubando uma das almofadas fofas do sofá. - Cadê todo mundo?

- Alice saiu com o Sal ainda agora, Verônica foi pro cinema com Breno. - Ela falou, sem tirar os olhos da tv ou a colher da boca, me jogou outra colher e indicou com a cabeça o prato ainda cheio de brigadeiro. - Quer?

Fiz que sim com a cabeça, peguei uma colherada bem nutrida e como quem não quer nada, perguntei:

- Sabe se o Bruno também saiu?

- Ouvi Breno falando que ele tinha ido pra não-sei-onde com não-sei-quem.

- Hum... - Automaticamente eu grudei os olhos na tv também.

- Eu também ouvi as meninas comentando que ele tinha dormido aqui. Com você.

- É.

A gente ficou calada até acabar todo o brigadeiro.

- O que você tinha ontem? - Perguntei, desligando a tv.

- Eu descobri que vão haver audições pro Municipal em dois meses.

- E é claro que você vai.

- Não Beca, você não tá entendendo: Eu não treinei o suficiente e além do mais, vão haver um milhão de outras bailarinas lá e... - Marcela começou a entrar num nível de leve desespero.

- Eu garanto que nenhuma delas é melhor, mais esforçada ou mais bonita e gostosa que essa biscate aqui. - E belisquei o braço dela, que riu e deu a volta na mesinha de centro pra me abraçar. - É o seu sonho, e sim, você vai, e se quiser, eu vou lá com você no dia do teste, me sentir gorda no meio do bando de bailarina anoréxica de canela fina! Combinado?

- Combinado. Agora é a hora que você me conta todas as coisas implícitas naquele "É".

- Eu fiz muitas besteiras ontem, Marcela, mas acho que essa foi a única da qual eu não consigo me arrepender.

- Defina "muitas besteiras" por favor, porque a última coisa da qual eu me lembro é de entregar um convite para um rapaz que não falava com você há quase dois meses.

- Ele levou uma perig... alguém, com ele. Daí você sabe o quão boa eu sou em encubar ciúme.

- Mas você sempre foi boa em encubar ciúme, Beca.

- Não depois de algumas vódegas, duas viradas de tequila e meia garrafa de algo que eu não tenho a menor idéia do que seja até agora revirando no meu estômago.

- Apenas. - Ela riu. - Vá, continue.

E eu resumi a noite inteira pra ela. Pelo menos as partes que eu lembrava.

- Muito madura você. - Marcela falou, nada irônica.

- Eu gosto dele, Marcela. Eu fiquei com ele, porque eu pensei que ele ainda gostava de mim também, e que ele tinha levado ela lá só de pirraça, pra me fazer raiva. Eu dormi com ele, disposta a reparar os danos que eu tinha causado da última vez e nos últimos anos. Se ele quisesse eu topava até namorar e todas essas coisinhas cafonas de datas, e mimos, e tal. Mas ele não quis nada disso.

- Como assim?

- Ele passou a noite comigo de pirraça, pra provar pra si mesmo alguma coisa que eu não entendi. E foi embora assim que acordou, sem nem olhar na minha cara.

- Acho que você descobriu onde liga o modo canalha de um bom rapaz e, infelizmente, foram poucas as que conseguiram achar onde desliga isso.

- Engraçado é que eu nunca sei direito o que eu quero, daí quando eu sei... - Eu ri sem graça, Marcela bagunçou meu cabelo e ligou a tv outra vez.

- Não é engraçado, Beca. Pode parar de tentar se fazer de forte, porque só piora. E se ele continuar filho-da-puta, só vai mostrar o tanto que não te vale a pena, mesmo depois desses anos todos que pareceu merecer.

A campainha tocou.

Um comentário:

Priscila Garcia disse...

"A campainha tocou."
Conta logo quem era antes que eu tenha um ataque de nervos. hahahahaha