E assim o rancor ia durando quase um mês e meio entre cumprimentos formais de bom dia, tarde ou noite, alternados pelo nível da preguiça de fingir um sorriso, tudo trabalhado no desgosto. Nesse meio tempo eu estudei e trabalhei feito uma vadia, tentando abstrair certas coisas erradas da minha cabeça.
Eram duas e quarenta da manhã de uma quarta-feira um tanto cansativa quando finalmente o último pinguço largou meu balcão.
- Quer carona, moça? - Eu sorri esfregando o suor da minha testa com o braço.
- Chefinho, aprecio sua oferta, mas a sua pessoa mora do lado mais contrário possível do caminho da minha casa. - Renato continuou sorrindo.
- E quem foi que disse que eu estou indo para a minha casa? - Eu passei a flanela na última gotinha alcoólica sobre o balcão e olhei surpresa descansando as mãos na cintura.
- Hmmm. Olha só que beleza, pelo menos um de nós terá uma noite decente.
- É só um daqueles casinhos... Nada com esperança, nem romance, ou essas coisas babacas. - Ele falou, olhando pro nada.
- E já tem tanto tempo que nenhum de nós dois tem dessas coisas babacas que eu to quase aceitando propostas não-babacas pra satisfazer pelo menos meu ego.
- Ainda bem que conseguimos superar toda essa tensão sexual entre a gente, porque olha, eu até te faria uma dessas propostas. - Eu joguei minha flanela nele, e nós rimos.
Sal se aproximou da bancada, pigarreando.
- Vou fechar o escritório lá em cima e vou pro carro, se quiser a carona, tá tudo de pé por aqui pra você... - Renato falou num sorrisinho malicioso, eu fiz que sim com a cabeça, ele apertou a mão de um Sal claramente indignado com o pedaço da conversa que tinha ouvido, e saiu.
- Vai pra casa agora? - Sal perguntou, me ajudando a pular o balcão com seus ombros fortes e comprometidos.
- Aham... - Falei, pegando minha mochila. - Acabei de arrumar uma carona. Algum recado pra Alice?
- Não, não, eu a vi antes de vir pra cá. - E fomos caminhando devagar pra entrada.
- Vocês estão bem?
- Estamos sim... Eu tava até querendo falar com você sobre o aniversário dela mês que vem, queria fazer alguma coisa.
- Eu tinha pensado sobre isso também. A tia dela tem uma casa numa praia aqui pertinho, e como coincide com a nossa semana de férias e com o aniversário dos gêmeos também, eu tinha pensado em irmos todos pra lá passar a semana.
- Você pensa em tudo.
- Ainda não se acostumou com isso? - Ele riu.
- Mas e o nosso trabalho, como fica?
- Deixa comigo. Eu falo com o chefe. - Sal levantou a sobrancelha e parou encostado no portão.
- De uns tempos pra cá vocês ficaram bem próximos... BEM próximos mesmo.
- O que eu posso fazer? - Fiz minha cara mais melosa. - Ele é minha alma-gêmea, o homem dos meus sonhos!
- Você tá mesmo saindo com o chefe, Beca?!
- Digamos que eu estou sendo irônica, Sal. Pelo amor de Deus, disso que te deram pra criar esses músculos, não tinha pro cérebro não? - Eu disse dando um pulinho pra bagunçar o cabelo dele. Renato parou o carro na frente do portão e buzinou. - To indo! - Gritei, pedindo com a mão que ele esperasse. - Boa noite, garotão. Aproveita pra dormir um pouco e tirar essas caraminholas da cabeça...
Eu virei de costas pra ele e comecei a andar pro carro.
- De qualquer forma, - Sal me segurou pelo pulso e eu não vou mentir que todo e qualquer coisa que sequer pensasse ser um pelo no meu corpo se arrepiou e meus joelhos fraquejaram por um segundo. - Cuidado. Por favor, tenha cuidado, Beca.
- Não se preocupe. - Eu tratei de me livrar do contato com a mão dele, então ri, dando um murrinho carinhoso no ombro dele. - Eu sei me cuidar muito bem, garotão. - E saí dali praticamente correndo. Enquanto minha consciência gritava sem parar: "Ele é dela, Rebeca." "Ele nunca vai ser seu!" "Você ainda não parou com essa palhaçada?"
Entrei no carro e fiquei calada até chegarmos no portão da república.
- Você tá muito quieta.
- Não é nada. - Tratei logo de me achar um sorriso no canto da boca e arquear a sobrancelha. - Acabo de lembrar que eu ouvi alguns boatos sobre nós dois termos um caso.
- E nós temos? - Renato perguntou, muito sedutor.
- Ainda não, chefinho. - Eu disse dando um beijinho na bochecha dele, abri a porta e saí. - Ainda não.
- Vou me lembrar disso! - Sorri, pondo minha mochila nas costas.
- Eu também, principalmente quando eu estiver deixando de dormir pra terminar dois trabalhos da universidade enquanto você estiver na gandaia.
- Se quiser vir também, eu sempre quis tentar uma coisa assim a três. - Eu ri, muito.
- Muito obrigada, mas essa eu vou passar. O recalque é todo meu.
- Boa noite aí, eu vou indo... Acho que tem alguém esperando por você alí em cima. - Olhei pra trás, Verônica e uma garrafinha de café, sentadas lado-a-lado no primeiro degrau da escadaria, me dando tchauzinho com a mão.
- Boa noite pra você também, e cuidado por aí na vida. - Renato sorriu e saiu. Fui subindo a escadaria.
- Ainda acordada, amiga? - Perguntei, sentando do lado dela.
- Fiquei acordada te esperando pra você dizer o quão linda eu sou. - Ela disse, muito seriamente, virando o restinho de café na xícara. - Eu fiz a sua parte escrita naquele trabalho em dupla de História da Arte, fica faltando só você me dar os croquis pra anexar no de Introdução à moda.
- EU JÁ DISSE QUE VOCÊ É UMA LINDA? - E pulei em cima dela num abraço, ela riu. - Por que você fez isso tudo, criatura? Deve ter dado um trabalho da porra fazer aquilo tudo sozinha Verônica! Você devia ter deixado pra eu terminar! Você é uma linda, mas realmente devia ter deixado pra eu terminar.
- Beca, você tá fazendo três turnos pelo menos três dias na semana, no centro comunitário, na universidade e na boate, trabalhando nos finais de semana, quase nem para mais aqui em casa pra gente reclamar da sua comida ruim ou botar a conversa em dia... E eu também não gosto nada de te ver dormir nas aulas, babando em cima dos seus desenhos. - Veronica falou enquanto bagunçava meu cabelo, eu fiquei calada por um bom tempo, envergonhada.
- Eu vou te compensar pelo trabalho, não se preocupe.
- Não precisa. Só arrume seus horários. Pare de tentar se manter ocupada o dia inteiro. - Ela disse.
- Eu penso em muitas besteiras quando tô desocupada. - Falei sem conseguir olhar pra ela direito.
- Pensar em besteira de vez em quando até faz bem, principalmente quando é uma besteira tão mal-resolvida. A besteira mais mal resolvida da cidade.
- Faz bem pra quem? - Perguntei levantando a sobrancelha.
- Pra alguém que está prestes a ter uma estafa, porque prefere se matar ao invés de encarar seus sentimentos de vez. - Ai.
- Eu não tô fazendo isso pra fugir de ninguém.
- Apenas de você mesma. - Eu fiquei emburrada. Verônica sorriu, me abraçando por um tempo. - Olha só pra você Beca, você tem andado exausta, sem saco pra sair com a gente e pelo amor de Deus há quanto tempo você não depila suas pernas?
- Talvez eu esteja um pouco descuidada ultimamente, mas...
- Beca, eu sei que você ainda tá magoada com toda essa história entre você e o gêmeo bonzinho, mas isso não devia ser um motivo pra se esquecer de você mesma, do quanto você é linda e da fila gigante de rapazes que adoraria te fazer esquecê-lo. - Eu ri, olhando pros lados.
- Não tô vendo fila nenhuma.
- Você não tem se permitido ver muita coisa há algum tempo. Cê devia voltar a sair com a gente, voltar a se divertir, voltar a se permitir enlouquecer às vezes.
- Da última vez que eu tentei seguir meus instintos não deu muito certo.
- Isso não quer dizer que vá dar errado todas as vezes. Mas no fim das contas é você quem sabe e eu não vou me meter mais. - Ela parou um instante fazendo uma careta muito engraçada. - Credo, eu tô parecendo a Marcela bêbada com aquelas crises de conselhos responsáveis dela.
- É verdade. - Concordei antes que ela voltasse a regar minha cara de novo com todas aquelas verdades. - Obrigada, V.
- Estamos aqui pra isso. - Ela me empurrou. - Agora anda, vamos dormir que amanhã é meu dia de fazer o café. - Eu ri e levantei, andando pro apartamento.
O alarme do meu celular começou a gritar aquela música irritante que eu costumava adorar antes de colocá-la como despertador, eu esfreguei meus olhos um instante e esmurrei o aparelhinho algumas vezes tentando encontrar a porra do botão certo de desligar, posto que não havia em mim um pingo de coragem pra levantar aquela hora, quanto mais pra procurar a porcaria de um botão pra calar a boca do Adam Levine - mesmo tendo as mais variadas teorias sobre como fazer isso nos meus mais memoráveis devaneios.
Sentei na minha cama e fiquei olhando minhas próprias pernas e meu Deus do céu há quanto tempo elas não sabiam o que diabos era uma Gilette? Enfim, cuido disso outra hora. Tinha prometido pra mim mesma que faria o café da manhã no lugar de menina Verônica pra compensar o trabalho.
Abri devagarzinho a porta do quarto, uma vez que Alice roncava seu vigésimo quinto sono e eu não gostaria nem um pouco de acordá-la.
Antes mesmo de chegar à cozinha eu ouvi um barulho muito esquisito vindo do banheiro. Dei três toques na porta e abri.
- MMWUUUULLBRRRLL!!!
- Ah meu Deus, Marcela, você tá bem? - Pergunta idiota, a menina tava quase verde, com a cara enfiada no vaso e vomitando como se não houvesse amanhã.
Ela fez uma longa pausa pra respirar, sentou no chão, desajeitada e com algum esforço, falou:
- Eu t-tô legal. - Então enfiou a cara no sanitário outra vez. Eu corri pra segurar seu cabelo. - T-tudo sob contro.. WURLLLB! - E lá se foi o resto de seja lá o que ela tenha jantado.
- Minha gente! Há quanto tempo você tá assim? - Perguntei afagando suas costas enquanto ela vomitava suas tripas fora.
- Hmm... Uma hora, eu acho... WWUUUULLBRRRLLLL... Não sei.
- Por que você não chamou nenhuma de nós?! Pelo amor de Deus, Marcela, você tá verde, transparente, sei lá! O que foi que você comeu?
- Aquelas bailarinas filhas da.. WUULLRRLLB..!!! - Agora além dos engulhos, havia soluços de choro. - Eu comi depois do ensaio pro municipal com elas... Devem ter posto laxante ou.. Alguma daquelas porcarias no meu pra... Pra... P-pr... WWUUUULLBRRRLL.. Enquanto eu fui ao banheir... WURLLBL!!!!
- Own Marcela, por favor, não chora senão você vai acabar engasgando. - Eu juntei um pouco de água da pia com as mãos e lavei o rosto dela. - Olha, segura seu cabelo um instante, eu vou alí nos meninos pedir pra algum deles ir ao hospital com a gente.
- Não... Não precisa de hospital não, Beca... WURRLLBL... Já tá passando, já vai passar.
- Você tá gelada, Marcela! Sua pressão deve tá muito baixa, você precisa de um médico.
- É a última... Coisa que eu preciso agora, Rebeca!
- Mas Marcela... - Ela me interrompeu.
- E se me derem um atestado? E se... WULLBRLL.. Se me internarem, eu não vou poder ensaiar o t-tanto que eu preciso...
- Marcela, você não tá entendendo, é a sua saúde, criatura!
- Não, Beca. - Ela respirou por um longo instante. - É o meu futuro... A chance da minha vida... Eu só preciso de um soro caseiro, e descansar um pouco. Já tá p-passando...
- Mas Marcela... - Ela interrompeu outra vez.
- Não precisa se preocupar. Eu... Hmm... Eu vou ficar bem. É só uma indigestão... Só isso.
- Tudo bem, se você quer assim. - Não era muito fácil lidar com a teimosia de Marcela. Eu levantei e segurei o braço dela, gelado. - Eu vou fazer o seu soro, vem. Aqui tá muito abafado, você precisa de ar.
- E se me der vontade de vomitar outra vez? - Eu dei descarga e a ajudei a se levantar.
- Você corre pra cá de novo.
Eu fiz o café e o soro enquanto Marcela ia quase voltando a sua cor normal, mas não comeu nada.
- Bom dia. Oi, Beca. - Bruno falou quando tirou os fones, num tom mais formal do que o necessário, entrando junto com aquele seu velho conhecido meu, o calçãozinho vermelho de correr. Sentou ao lado de Marcela, passando a mão pelos cachos dela. - Tá tudo bem com você, priminha?
Marcela fez que sim com a cabeça. Ele sorriu e ficou lá um tempo, depois veio andando em direção a mim e o meu coração em direção à puta que pariu de tão rápido que batia.
- O que ela tem? - Bruno perguntou quase sussurrando pra não acordar Marcela, e pra quase sussurrar ele precisava chegar perto. Perto demais.
- Quando eu acordei ela tava morrendo de vomitar no banheiro. - Falei baixinho enquanto mexia qualquer coisa que definitivamente não precisava ser mexida na panela, porque eu precisava mexer em alguma coisa pra não entrar num colapso nervoso. - Eu pedi pra te chamar, pra levá-la pro hospital mas ela não quis. Alguma coisa sobre atestado e os ensaios que ela ia perder, coisa assim.
- Marcela ainda vai se matar pelo ballet qualquer hora dessas... - Ele disse, pegando com a mão algo da panela que eu mexia.
- Eu tô preocupada com ela.
E então vieram as três palavras que me deixaram com as pernas bambas.
- Mas vem cá... - Bruno falou se chegando mais perto e não tão discretamente assim, me afastei.
- O quê?
- Vo... Você pediu mesmo pra ir me chamar? - Sério, Deus. Eu podia ter começado meu dia sem essa.
- Você entendeu o que eu quis dizer. - Falei e saí andando pelo corredor. Por causa de um orgulho que não seria derrotado outra vez, mesmo com o coração inchado de saudade.
- Você entendeu o que eu quis dizer. - Falei e saí andando pelo corredor. Por causa de um orgulho que não seria derrotado outra vez, mesmo com o coração inchado de saudade.
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