domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 4)

Oito e vinte da noite. Pra variar, atrasado. Tinham umas quinze pessoas no lugar - Uma boate antiga da cidade que tinha sido fechado há muitos anos. Tinham deixado alguns panfletos no quadro de avisos da universidade, iam reabrir precisavam de funcionários novos.

O violão nas costas costumava me dar uma eterna primeira impressão de vagabundo, só que como eu já estava atrasado mesmo, um ponto negativo a mais, um a menos não ia fazer lá muita diferença - Eu precisava do emprego, eu tinha resolvido ser o cara certo pra ela, caras certos têm empregos.

Fui entrando na sala de espera apertada, e dei meu nome para uma mulher nada simpática que com certeza se perguntou que tipo de pessoa teria um condimento como sobrenome, mas ficou calada por educação.

- Eduardo Sal... Pra qual vaga? - Ela perguntou, pondo o cabelo vermelho encardido pra trás da orelha, apoiando a prancheta na cintura, estranha. - GoGo Boy?

- Não, não. Só garçom, por favor. - Falei educado, com um sorriso. Era o que tinha maior probabilidade de me contratarem, duas vagas de barman, quatro garçons e cinco garçonetes para a área vip, o resto eu nem li. Ela me deu um número e pediu que eu esperasse sentado em algum canto por alí, então eu fui.

Havia uma cadeira vazia ao lado de uma moça de cabeça baixa, entretida com um jogo no celular e batendo a perna nervosa pra passar o tempo mais rápido. Sentei lá pondo o violão de lado, ela continuou de cabeça baixa, escondendo o rosto com o cabelo e começou a me parecer extremamente familiar.

- Rebeca Albuquerque. - Chamou a mulher de cabelo encardido. - Pode ir! - A moça do meu lado (que agora eu sabia o porquê me parecia tão familiar) levantou da cadeira e foi até a sala com a porta de vidro azul. Ainda nervosa, andando um pouco mais rápido que o necessário.

- Boa sorte. - Eu disse baixinho, mas acho que ela não ouviu. Amarrou o cabelo num rabo de cavalo, adiantou um sorriso simpático diante da porta fechada, girou a maçaneta rápido e entrou.

Era amiga da Alice, a mais bonita das amigas dela - pra falar a verdade. A que não gostava de mim e eu não tinha a menor ideia do porquê. Desejei que ela arrumasse o emprego e que eu também, assim ficaria mais fácil tirar a má impressão que ela teve de mim e poderia fazer uma amiga sem más intenções - pela primeira vez em muito tempo.

~

Oito e vinte da noite. Eu já estou sentada nesta bosta de cadeira há mais de meia hora, esperando aquela vaca do cabelo encardido chamar meu nome pra fazer logo essa porra de entrevista pra eu poder ir embora dormir. Minha cabeça explodia tanto de dor de cabeça que eu me obriguei a desfazer o rabo de cavalo pra ver se a dor tinha dois dedos de boa vontade de aliviar.

O cara parrudo com cara de quem toma bomba sentado do meu lado mascava audivelmente um chiclete de melancia - GoGo Boy, aposto. A vaca batia na prancheta com uma caneta de gliter azul no mesmo ritmo que eu batia meu pé inquieto no chão, irritada. Alguém abriu a porta e entrou no lugar, eu fiz questão de nem olhar, devia ser outro Gogo Boy metido a gostoso. Continuei concentrando meu intelecto glorioso na cobrinha recordista do meu celular, e assim permaneci até que:

- Nome? - Perguntou a vaca com a voz mais pastosa do que sua cara, porém com um ar de excitação que me deixou curiosa para olhar.

- Eduardo Sal. - Ele respondeu rouco, num sorriso. Fudeu, fudeu, fudeu.

Eu levantei a cabeça para conferir. Moreno, cabelo curto, violão nas costas, braços musculosos, ombros desgraçadamente perfeitos e o meu coração disparado por baixo da blusa justa de flanela. Fudeu, era ele mesmo. A vaca encardida deu uma ficha pra ele e eu tratei de fingir que não estava alí.

Sal veio andando e sentou do meu lado sem me reconhecer, os anjinhos do bem e do mal na minha consciencia iniciaram uma guerra mediúnica no meu cérebro pra decidir se ele não ter notado a minha presença era uma coisa boba e ele só não tinha olhado direito ou eu era uma ridícula de achar que ele não tinha nada melhor pra fazer que ficar olhando pra ver se me reconhecia. Lógico que o anjinho do mal venceu e a dor na minha cabeça pulsou outra vez.

Alguém abriu a porta, e disse algo pra vaca encardida que chamou mais alto que o necessário:

- Rebeca Albuquerque. Pode entrar! - Respirei fundo e levantei rápido, e andei rápido também, na verdade o máximo que pude. Mas quase tropecei, bem no pé da porta de vidro azul, quando vi o reflexo dele no vidro e ouvi sua voz rouca sussurrando:

- Boa sorte. - Eu não olhei pra trás. Apenas parei bruscamente, amarrei meu cabelo no rabo de cavalo de novo, sorri sozinha do murro que o anjinho do bem deu mentalmente no anjinho do mal, girei a maçaneta rápido e entrei.

Aquele escritório tinha cheiro de carro novo, não me pergunte o por quê, mas tinha. Paredes em azul (no mesmo tom que o vidro da porta), grafitadas com letras de música de cima a baixo, um sofá de couro preto, e um cara muito charmoso, lá pelos 25 ou 30, com uma camisa do Ramones e a barba por fazer, sentado simpático atrás da mesa chique de vidro.

- Boa noite, senhorita... Rebeca, certo? - Confirmei, ainda sorrindo. - Sente-se, por favor. - Ele disse, apontando para a poltrona preta debaixo da luminária torta que descia do teto.

Eu sentei e ele ficou lá observando o currículo que eu havia mandado uns dois dias atrás, depois alternando entre os papéis que folheava e a minha aparência. Depois só minha aparência, a ponto de eu querer me afogar no ganges mentalmente por não ter passado mais maquiagem.

- "Inglês parcialmente fluente"... - O cara leu, depois olhou para mim com um ar desconfiado. - Você não mencionou nenhum curso aqui.

- Nunca fiz curso algum. - Respondi. Ele sorriu, levantando da cadeira visualmente confortabilíssima, andou até bem perto de onde eu estava, e sentou-se na mesa de vidro, me olhando de um jeito desafiador.

- So... Why just "half" fluent, Rebeca? - O meu provável futuro chefe perguntou, eu ja imaginava.

- I have a little bit of difficulty for complete sentences when I talk, but I can understand what I listen very very well. - Respondi prontamente, ainda com um sorriso.

- Eu tiraria o "parcialmente". Seu inglês me parece perfeito, aliás, seu currículo me parece perfeito, ótimas notas na escola, ótimas recomendações acadêmicas... Bem promissora, exceto por um pequeno detalhe: O que me faria empregar uma simpática moça de 19 anos de idade, universitária federal, no provável auge de sua vida social, sem a menor experiência para um cargo que requer tanta habilidade, num ramo que não é muito comum ver mulheres, para escravizá-la (no melhor dos sentidos, claro) às noites de terça, quinta, sexta e sábado atrás de um balcão? - Perguntou levantando a sobrancelha esperando uma resposta convincente.

- Eu aprendo rápido e tenho força de vontade o suficiente para me candidatar a uma vaga como essa. Além, lógico. do fato de ter contas a pagar como qualquer outra pessoa nessa cidade, além desse ser o melhor dos salários entre as vagas oferecidas, e... Creio que abstrair de algumas saídas a mais ou a menos com os amigos não vai ser lá uma facada tão sangrenta assim, e também nós costumávamos vir aqui antigamente, velhos habitos assim como as boas lembranças tendem a não morrerem nunca, não é mesmo?

- Olha... Você está a meio triz de ser contratada. - Ele avisou, eu continuei sorrindo. - Mas para isso você só precisa passar na última fase deste teste, fase esta que eu acho a mais absurdamente difícil.

- Posso saber qual é? - Perguntei curiosa enquanto ele me dirigia ao mini-bar por trás do suntuoso sofá preto.

- Prove que você pode servir um drinque, levar cantadas ridículas e ser psicóloga ao mesmo tempo. - E sentou num dos banquinhos da bancada, esperando que eu fizesse alguma coisa.

- Eu posso fazer isso - Falei - Se puder me falar qual drinque vai querer?

- Algo forte, por favor. Tive um dia bem cheio fazendo todas essas entrevistas irritantes... Tem idéia do quanto é difícil encontrar pessoas determinadas a trabalhar e lindas como você nesta cidade, com um pai que não te apóia em nada e um namoro mal-resolvido? - Ele perguntou simulando a situação e eu tentando não embebedá-lo assim logo de cara, afinal que lucro há nisso? O negócio era embebedar aos pouquinhos, uma dose por vez.

Conversamos por mais algum tempo, depois de três drinques bebidos pela metade e 10 minutos de psicanálise recíproca, eu fui contratada.

- A propósito, muito prazer Rebeca. - Ele falou estirando a mão. - Renato Roriz, seu novo chefe. Boa sorte com sua mãe e com rapaz da periguete.

- Boa sorte com seu pai, com o namoro e vamos levantar esse lugar outra vez. - Eu respondi apertando a mão dele, sorri, e sai pela porta de vidro azul pensando que o meu dia não tinha sido lá tão ruim assim... Até abrir a porta e ver Sal ainda lá.

A vaca chamou o nome dele logo assim que eu saí, ele levantou, só que no lugar dele ir direto pra porta azul, veio perto de mim e perguntou:

- E aí, conseguiu? - Confirmando com a cabeça eu não consegui deixar de sorrir. - Parabéns!

- Eduardo Saaal! - Repetiu a vaca da voz pastosa, apressando para que ele entrasse na sala.

- Você tem que ir, obrigada pela força e bom... Boa sorte. - Foi o que eu consegui falar sem parecer uma retardada, dei um murrinho amigavel no braço dele.

- De nada... - Ele foi abrindo a porta, eu me virei e comecei a andar para a saída, e então eu ouvi aquela voz rouca falando comigo outra vez. - Beca!

- Oi.

- Pode me esperar? - Ele perguntou.

"Não, diga não Rebeca. Diga que não. DIGA NÃO!" Gritava minha própria consciência, mas eu nunca fui lá muito boa em ouvi-la mesmo e... Porra, olha pra cara dele. Moreno, alto, bonito, sensual e ainda mais maravilhosamente abençoado ainda de ter aquela cara de cachorrinho que caiu da mudança e você tem a obrigação de se sentir tentada a pegar pra criar. O que eu consegui dizer?

- Tá. É. Pode ser. - Sal simplesmente sorriu virou e entrou. E lá volto para aquela mesma cadeira, com o celular nas mãos, no mesmo jogo da cobrinha, me odiando do mesmo modo que estava antes, só que agora eu tinha um emprego.

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