domingo

Capítulo 8 - Belo Desastre (Parte 3)

Estava nublado e cheio de vento o caminho enquanto eu ia andando devagarzinho a caminho da escola comunitária. Carregando escondido lá no fundo da alma, que eu segurava com tanto empenho quanto eu segurava a bolsa em meu ombro, o amor que eu não tinha pra mim. Tentando me proteger, e aniquilar qualquer dor que fizesse mal, tentando me deixar parecer segura de mim - do que eu queria fazer, de quem eu queria ter. Tentando fingir que eu estava bem tanto quanto eu não estava. Eu carregava com pesar meu coração em passos tão vagarosos que a chuva fina que tinha começado a me acompanhar no meio do caminho vinha se tornando mais grossa a cada segundo, obrigando a reconstrução da estima por mim mesma a se apressar antes que alguém me visse.

Era um prédio antigo, o da escola comunitária, e o que tinha de antigo tinha de cheio de vida. Era um lugar, provavelmente o único lugar na minha vida inteira, que fazia algum sentido. Até agora.

Bruno vinha descendo a escadaria, com um sorriso safadamente doce na boca, o cabelo bagunçado molhado pela chuva. Lindo. E com uma periguete à tira-colo. Segurando os livros DELA. Mexendo no cabelo, jogando charme pra ELA, que tinha peitos maiores que o meu crânio. Um cabelo loiro nojento que ia até depois da cintura. Passando aquela mão de periguete dela pelo ombro DELE de uma forma safadamente oculta, rindo de um jeito chamativo que somente uma periguete pronta pra dar o bote fazia. E ele dando corda.

Eu olhava tudo do portão da frente, quase entrando a guarita do Seu Zé para me esconder e ter um ângulo melhor de espionar os dois. A chuva parou e eles tambem no meio da porra da escadaria. Ele não parava de sorrir, ela não parava de ter cara de periguete - nem por um segundo sequer. Conversando qualquer coisa idiota sobre algo que havia passado de manhã cedo na tv, imagino. Ela não tirava as mãos dele, que parecia gostar, virando o pescoço pro lado, ao bagunçar o cabelo, como costumava fazer quando se sentia ér.. bem.. Você deve imaginar como.

Eu indignada, mordia meu lábio inferior com tanta voracidade e ciúme que se isso fosse durar mais de cinco minutos, com toda a certeza eu terminaria por arrancar um pedaço. Na ponta dos pés, tentando olhar pela janela na guarita que ficava bem de frente praquela cena patéticamente revoltante. A periguete anônima que eu não conseguia ver o rosto bem o suficiente pra saber quem era deu sua última gargalhada esganiçada - provavelmente por alguma piada ridicula e sem graça que ele tinha me ouvido contar e agora estava usando pra ganhar aquela periguete ridícula. Ela virou o cabelo pro lado e foi chegando tão pertinho dele que eu podia ir lá e sentar a mão naquele nariz perfeito ridículo que com certeza tinha comprado, e sussurrou alguma insinuação pornô envolvendo seus cabelos loiros e os ombros perfeitos de Bruno e todos os atributos que viriam de brinde com ambos os itens dentro de um quarto medonho em algum motel de médio preço num canto recluso na cidade, beijou indecentemente sua bochecha - se é que isso é possível - pegou seus livros ridículos que provavelmente ela nunca leu nem vai ler na vida das mãos dele ainda abestalhado pela qualquer coisa que ela sussurrou na orelha dele sem tirar aquele sorriso safado da cara, e saiu rebolante escada abaixo, sorrindo como se tivesse acabado de ganhar um prêmio nobel da periguetagem.

Eu pensei em 17 maneiras diferentes de se quebrar a clavícula de uma periguete sebosa. Em 21 modos de arrancar seus olhos verdes e cintilantes com uma mão amarrada nas costas. Em 134 jeitos de arrancar seus peitões e nariz falsos usando pinças, tesouras e grampeadores de escritório. Mas apenas fiz um aceno de cabeça quando ela passou do meu lado dizendo "Bom dia" deixando à mostra seus dentes de branquamento artificial caro enquanto Seu Zé, o porteiro sem dentes da frente, deixava seu queixo cair olhando pra bunda malhada de academia cheia de periguetes como ela, que passava indo embora. E eu acabara de chegar.

- Bom dia. - Bruno falou pra mim assim que a periguete saiu e eu entrei em seu campo de visão.

- É, pode ser. - E continuei subindo a escadaria ignorando a presença dele, andando atrás de mim tentando acompanhar meus passos apressados nos corredores em busca da sala de desenho.

- Tudo bem com você? - Ele perguntou, tentando contato.

- Aham.

- Sua aula é só à tarde? - De novo.

- Aham.

- Aconteceu alguma coisa? - Ele não desiste?!

- An an.

- Tem certeza disso? - Mas será possível?!

- Aham.

- Eu fiz alguma coisa pra você não querer falar comigo?

- An an. - Dei de ombros, negando e obviamente mentindo.

- Certo, entendi. - Finalmente se deu por vencido revirando os olhos. - Tchau. Até.

- Tá. Tchau. - Respondi, ele seguiu caminho por um corredor diferente, me deixando sozinha com todo aquela angústia, ciume e mau humor dentro de mim.

Eu nunca fui de me afetar pelas ações das pessoas ao meu redor, nem andar magoada, com cara de triste por ai - Quem é você, e o que você fez comigo? Eu não sou assim, nem é agora que eu vou começar a ser. Soltei meu cabelo do rabo-de-cavalo, empinei o nariz e sai continuando naquele corredor do segundo andar como se nenhum dos andares do meu castelo estivessem desmoronando, mesmo que fosse exatamente o contrário.

Eu tinha duas aulas de desenho pra dar de manhã, cinco da universidade pra assistir à tarde e uma entrevista de emprego para ir à noite. Alguém pode pelo amor de Deus me desejar sorte? Porque do jeito que a minha tá hoje, eu só amanheço viva a poder de reza.

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