sábado

Capítulo 9 - Escadas (Parte 4)

Não tinha a menor idéia de que horas eram, mas estava amanhecendo por trás dos prédios no horizonte. O "esconderijo secreto" continuava o mesmo, seguro e parado no tempo a ponto de fazer eu me sentir com uns nove anos outra vez, principalmente depois de vê-la deitada alí. Eu ri sozinho, e me aproximei tentando não fazer barulho com medo de acordá-la.

- Alice, como você me ach..? - Beca disse, sem tirar os olhos daquela vista perfeita, e eu sem conseguir tirar os olhos dela.

- Não é a Alice. - Ela levantou rápida, assustada e tensa, eu ri. - Calma, sou só eu.

- Bruno?! O que você tá fazendo aqui? Como adivinhou..?

- Alice me ligou preocupada quando você saiu correndo e não te achava em lugar nenhum, nem ninguem na rodoviaria havia te visto pegar um ônibus. Então eu peguei o carro e vim direto pra cá... Ou você acha que eu esqueceria a nossa casinha avulsa, abandonada na melhor vista dessa cidade que você apelidou de "esconderijo secreto" quando a gente tinha, sei lá, nove anos? - Ela sorriu, voltando a olhar para o nada. Sem maquiagem alguma, com os olhos inchados, devia ter passado a noite inteira chorando.

- Por que você não senta aqui? - Não precisei que ela pedisse duas vezes. - Eu senti tanta falta desse lugar...

Os olhos dela, negros e indecifráveis, continuavam cheios d'água, sempre olhando para o nada, e eu morrendo por dentro sem saber o que se passava naquele mundo obscuro pro resto do universo. Sentei ao lado dela, deixei que ela segurasse minha mão e deitasse a cabeça no meu ombro.

- Senti falta de você, sabe. - Ela continuou a falar. - Eu quis arrancar sua mão da dela, porque por alguma razão insana na minha cabeça, era a minha mão que deveria segurar a sua, e mesmo a gente não sendo nada um do outro, era uma tortura mental imaginar você beijando ela pelo mesmo motivo, porque era a minha boca que devia estar na sua. Isso me assusta. - Ela me deu um sorriso e mexeu no cabelo. - Me proteger sempre foi uma opção mais fácil do que me deixar sentir qualquer coisa. Porque eu cresci com a indiferença e me acostumei com ela. Tipo aquilo de usar um sapato que machuca, só que usando o tempo suficiente, uma hora ele acaba parando de incomodar. Até chega você e me aperta o sapato num lugar que nunca tinha doído antes, fazendo com que eu me perguntasse se eu nunca sentia nada porque não queria, por não ser capaz ou só porque não era você.

Ela continuava sem olhar pra mim, deixando as lágrimas riscarem o desenho do rosto dela, uma a uma, contornando a covinha do lado direito quando ela sorriu sem humor outra vez.

- Se eu disser que tenho uma vaga ideia disso tudo acontecendo aqui, é mentira... - Ela disse, apontando para a própria cabeça em desânimo - Eu estou uma bagunça, eu sou um desastre, Bruno.

- Você é linda, mas é mais que isso. Você sorri suas tristezas com um ar de quem mente pra si mesma, fingindo pro mundo que tá bem. Uma carência sem tamanho escondida em toda essa força que você carrega como uma armadura. Vendo você querer tanto bem à Alice, se privando do que poderia finalmente te fazer feliz. - Ela me olhou, então fechou os olhos e apertou o rosto no meu ombro. - Não é muito comum achar alguem com a sua sinceridade mentirosa, é paradoxal, mas você sempre é, sem se tornar contraditória. E nunca dá pra saber o que diabos você tá pensando porque quando eu tento olhar nos seus olhos eu me distraio no tanto que eles são lindos, deixando tudo ao meu redor desaparecer e eu poderia ficar olhando eles por dias... Eu te conheço e te quero pra mim, mais do que imagina, provavelmente, mais do que você gostaria. Não adianta você vir dizer que desistiu de mim, nem nada do tipo, porque de todos os desastres que eu podia no mundo, eu escolhi você.

Beca apertou minha mão na dela.

- Não se preocupe não, menina. Eu não vou soltar enquanto você puder mantê-la sustentada aí. - Ela sorriu diferente desta vez, passou a mão pelo meu rosto e bagunçou meu cabelo, eu sorri de volta pra ela, levantei e a puxei, fazendo Beca levantar pra caber no meu abraço. - A Alice foi indo na frente de ônibus. Anda, vamos voltar pra casa.